A pecuária bovina no Brasil e na América Latina é predominantemente extensiva, com rebanho criado em grandes áreas de pasto. Embora ofereça mais liberdade do que a produção intensiva (factory farming), isso não significa que ela promova bem-estar: os animais muitas vezes sofrem com carência nutricional, estresse térmico e manejo ineficiente. Além disso, a atividade tem impactos ambientais graves – como desmatamento, degradação dos solos e perda de biodiversidade local – e possui baixa produtividade e resiliência climática.
Entre 1985 e 2024, mais de 3 milhões de hectares de áreas úmidas foram convertidas em pastagens. De acordo com o Observatório do Clima, o gado bovino também é responsável por 17% das emissões de gases de efeito estufa no território brasileiro, pois a fermentação entérica (digestão de material vegetal) no estômago dos ruminantes emite grandes quantidades de metano.
Um artigo publicado na Revista de Economia e Sociologia Rural aponta que há formas de transformar a pecuária em uma atividade mais sustentável, reduzindo danos. O trabalho é assinado por pesquisadores da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Indicada pelos pesquisadores como viável, a pecuária regenerativa propõe uma meta ambiciosa: regenerar os recursos naturais dos quais a atividade depende. O processo leva em consideração não apenas a preservação da natureza, mas o respeito à diversidade sociocultural das comunidades rurais e sua relação com o modo de vida pecuário. Ao contrário dos sistemas tradicionais que trabalham com monoculturas, essa alternativa utiliza passagens biodiversas, compostas de gramíneas associadas com leguminosas.
“As condições de solo e relevo nas propriedades rurais variam, e uma espécie forrageira geralmente não se adapta bem a todos esses microambientes”, comenta Judson Valentim, coordenador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Acre. O Sistema Guaxupé, desenvolvido pela Embrapa, eleva a rentabilidade de sistemas pecuários e permite que pastagens se mantenham até 30% mais produtivas por vários anos.
A Tríplice Monotonia do Sistema Agroalimentar
“As carnes são o epicentro do sistema agroalimentar global, por isso a carne tem que ser estudada”, afirma Ricardo Abramovay, primeiro autor do artigo, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e pesquisador na Cátedra Josué de Castro.
Recentemente, a cátedra inspirou a proposta de um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) voltado à erradicação da fome e à segurança alimentar. Intitulado Superar a Tríplice Monotonia do Sistema Agroalimentar, o instituto recebeu R$ 7,3 milhões em recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). De acordo com os pesquisadores, essa tríplice monotonia se refere à homogeneidade do modelo tradicional de produção: há pouca diversidade no cultivo de pastagens, na criação de raças animais e nos métodos de manejo.
“Vegetações como o Cerrado, o Pampa e o Pantanal têm pastagens naturais que vêm sendo extintas para entrada de lavouras. Na verdade, as lavouras deveriam ser colocadas em locais apropriados e as pastagens nativas deveriam ser aproveitadas para rebanho”, critica Alessandra Matte, doutora em Desenvolvimento Rural, integrante da cátedra e coautora do artigo.
“A pecuária regenerativa tem por princípio olhar o animal, olhar o homem como ator social e olhar a vida em torno deles, no ecossistema em que eles se encontram”
Pastagens biodiversas e manejo adequado
Uma pastagem bem conservada permite que as plantas criem raízes mais profundas, aumentando a quantidade de oxigênio disponível no solo e facilitando a infiltração da água. Isso mantém as plantas saudáveis por mais tempo, mesmo em períodos de seca, e ajuda a recuperar pastagens degradadas.
O uso de leguminosas ainda torna o ecossistema mais resiliente a pragas, doenças e eventos climáticos. Com maior diversidade de plantas, também amplia-se a presença de microrganismos e fauna acima do solo. “O ataque de uma praga afeta uma espécie, mas não todas, então o sistema tem maior plasticidade para tolerar interferências bióticas e abióticas”, justifica Valentim.
O amendoim forrageiro, por exemplo, é uma planta altamente proteica nativa do Brasil, que serve como alimento para animais ou cobertura agrícola e provê a adubação natural no solo.
Para comparação, o adubo natural pode substituir 150 kg de nitrogênio por hectare/ano, o equivalente a 350 kg de ureia (fertilizante com ~45% de nitrogênio). A Embrapa estima que, para produzir essa quantidade de ureia, são necessários cerca de 2 barris de petróleo ou 318 litros.
“O único caminho para uma tecnologia que permita ter passagens persistentes e produtivas a médio e a longo prazo é uma fonte de cooperação de nitrogênio que seja factível para todos os produtores”
Além disso, pastagens diversificadas permitem reduzir até sete vezes a área necessária para a criação animal. Atualmente, a média brasileira é de um animal por hectare, mas projeções do método Guaxupé indicam que ela pode aumentar para 3,5 animais por hectare. “Ao não usar herbicidas e diminuir o ciclo de abate dos animais com a melhor nutrição, você reduz a emissão de gases de efeito estufa”, afirma Judson Valentim.
Os pequenos produtores
Um grande desafio para expandir a pecuária regenerativa é a adesão de pequenos e médios produtores. “Eles ficaram acostumados a ter pastagens limpas com só um tipo de capim, e as leguminosas são consideradas indesejáveis ou invasoras. Então nós temos que fazer uma mudança cultural”, comenta Valentim.
O plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono) estimula a adoção de tecnologias mais sustentáveis, como integração lavoura-pecuária e pastos consorciados. Atualmente, porém, ele representa menos de 1% do total de crédito agrícola do Brasil. Segundo o pesquisador, além da escassez de linhas de crédito, muitos produtores não têm acesso a órgãos ambientais em seus municípios. “Os gargalos não são só tecnológicos: existe uma grande desigualdade em termos de capacidade de acesso às políticas públicas.”
No País, apenas 20% dos pecuaristas têm acesso à assistência técnica. Na Amazônia e em outras regiões do Norte, esse porcentual chega a menos de 5%. Para Alessandra, agências governamentais precisam atuar na oferta de assistência técnica e extensão rural, capacitando os produtores a manejar pastagens.
“Nós precisamos orientar eles com relação à pluviosidade, à altura do pasto para retirar ou colocar os animais”, diz a cientista.
“Além do papel de conservação, a pecuária regenerativa tem a capacidade de ser mais rentável e, por consequência, melhorar as condições de vida das famílias”
No Acre, o amendoim forrageiro já é utilizado em mais de 100 mil hectares. Segundo Judson, produtores da área investem no produto há mais de 20 anos. “Nossa esperança é que, com a parceria do INCT, nós sejamos capazes de ampliar isso para a região Sudeste e Centro-Oeste, e expandir cada vez mais essa cultura no Brasil”, conclui.
Fonte: Um Só Planeta.
Foto: freddy dendoktoor/PublicDomainPictures
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