De janeiro a setembro deste ano, o desmatamento na Amazônia atingiu a marca de 9.069 quilômetros quadrados, o que representa a maior devastação da floresta em 15 anos. Os dados são do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o número corresponde a quase oito vezes a cidade do Rio de Janeiro.
Enquanto o avanço da destruição bate recorde atrás de recorde, há partes da floresta que ainda são completamente desconhecidas pela ciência. Em novembro, uma equipe de cientistas, sendo a maioria da Universidade do Estado de São Paulo (USP), com apoio do Exército brasileiro, embarcará em uma expedição de 17 dias para a Serra do Imeri, um conjunto de montanhas no norte do Amazonas, próximo à fronteira com a Venezuela, para fazer um inventário da biodiversidade daquele local e, em um segundo momento, analisar como as espécies poderão ser impactadas pelos efeitos da mudança do clima.
“Não temos a menor ideia do que vamos encontrar lá; é um lugar completamente desconhecido”, diz o professor Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências (IB) da USP, um dos zoólogos mais experientes do País e líder da expedição, com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) no âmbito do Programa Biota. A aventura começa em novembro. “Sabemos que vai ter muito bicho e muita planta, mas de quais tipos, não faço ideia. Só vamos saber quando chegarmos lá”, completa Rodrigues.
O objetivo primário da missão é justamente esse: fazer um inventário de biodiversidade para saber que tipos de bichos e plantas vivem naquelas escarpas e de que forma eles se relacionam, ou não, com as espécies que habitam as partes mais baixas do bioma. O potencial para a descoberta de novas espécies é enorme, visto que as condições ambientais e climáticas que caracterizam esses ambientes de alta montanha são bem diferentes das encontradas nas florestas tradicionais, de altitudes mais baixas, e que essas montanhas estão isoladas do restante da Amazônia — biogeograficamente falando —há vários milhões de anos. Tempo mais do que suficiente para que elas desenvolvessem uma biodiversidade própria e exclusiva de seus domínios (endêmica, como se diz no vernáculo científico).
Imagens de helicóptero, feitas em voos de reconhecimento do Exército, revelam uma paisagem espetacular, com montanhas verdes coroadas por nuvens e rodeadas por vastas extensões de floresta tropical intocada, sem qualquer sinal evidente de interferência humana. O acampamento será montado a cerca de 2 mil metros de altitude, no topo de um morro vizinho ao pico mais alto da região, que ultrapassa os 2.400 metros de altitude, segundo informações do Google Earth (a elevação exata precisará ser medida em campo com o uso de GPS). Foi a única área suficientemente plana e naturalmente descampada, identificada pelo Exército, para permitir o pouso dos helicópteros que transportarão as equipes até o local.
Serão ao todo 17 dias de expedição (de 4 a 20 de novembro), com uma equipe de 14 pesquisadores, incluindo especialistas em répteis e anfíbios (herpetologia), aves (ornitologia), mamíferos (mastozoologia), plantas (botânica) e parasitas. O grupo inclui nove professores e alunos de pós-graduação da USP, mais cinco representantes de outras instituições do Brasil e do exterior, incluindo a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), a Estación Biológica de Doñana (Espanha) e o Centre National de la Recherche Scientifique (França).
A equipe científica contará com o suporte de 76 militares — 21 em campo e 55 em Santa Isabel do Rio Negro, cerca de 100 quilômetros ao sul —, responsáveis pela logística e segurança dos trabalhos. “Estamos atribuindo grande prioridade a essa expedição”, disse o general Guido Amin Naves, chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia (DCT) do Exército, em uma reunião realizada em julho na Fapesp, para assinar um acordo de cooperação científica e tecnológica entre o Comando do Exército e a Fundação — no qual está contemplada essa expedição.
A equipe de pesquisadores é, em grande parte, a mesma que realizou a primeira expedição científica ao Pico da Neblina, a montanha mais alta do Brasil (com 2.995 metros), em 2017, também com apoio do Exército e de guias yanomamis. Geograficamente, tanto o Pico da Neblina quanto o seu vizinho, o Pico 31 de Março (segunda maior montanha do País, com 2.974 metros), também são considerados parte da Serra do Imeri, mas integram um maciço rochoso diferente, em forma da platô, fisicamente separado e com características bem diferentes da cordilheira que os pesquisadores vão percorrer agora, 80 quilômetros a sudeste dali. Do ponto de vista ecológico, são como dois arquipélagos distintos, separados por um grande mar de floresta verde.
Além da presença do Exército, a região conta com duas camadas de proteção legal: o Parque Nacional do Pico da Neblina, gerido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e a Terra Indígena Yanomami, gerida pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A unidade abriga cerca de 27 mil indígenas ao longo de seus quase 100 mil quilômetros quadrados de extensão, mas a região onde ocorrerá a expedição é desabitada na sua maior parte. A aldeia mais próxima fica 13 quilômetros a nordeste do pico mais alto, e as informações preliminares são de que nem mesmo os indígenas costumam subir as montanhas.
A ideia de montar a expedição surgiu em 2018, no ano seguinte da viagem ao Pico da Neblina — que foi um grande sucesso. Rodrigues e outros três colegas cientistas estavam percorrendo o Rio Negro à procura de lagartos para um projeto de pesquisa quando notaram o contorno da Serra do Imeri no horizonte. Olharam no mapa, pesquisaram a literatura científica, e perceberam que não se sabia nada sobre aquelas montanhas. “Temos que ir para lá”, pensaram. O plano inicial era realizar a expedição em 2020, mas a viagem teve que ser adiada em função da pandemia de covid-19.
Na prática, o trabalho de campo será muito semelhante ao que foi feito no Pico da Neblina cinco anos atrás. A ideia é coletar a maior variedade possível de plantas e animais para serem identificados, catalogados e caracterizados, tanto do ponto de vista morfológico quanto molecular. Cada tipo de bicho exige uma estratégia específica de coleta, que segue protocolos de pesquisa bem estabelecidos — para répteis e anfíbios, por exemplo, são usados baldes de plástico enterrados no chão, que funcionam como armadilhas; enquanto que morcegos e aves são capturados com redes, que são estendidas entre as árvores, em horários específicos do dia e da noite. Trilhas serão abertas a partir do acampamento-base, com a ajuda do Exército, para permitir a realização das coletas em diferentes altitudes e em ecossistemas variados.
“O objetivo principal do projeto é coletar material para compreender as relações históricas e os contatos pretéritos entre a Amazônia, os Andes e a Floresta Atlântica durante os períodos glaciais e interglaciais, com a expectativa de que estes resultados nos auxiliem a compreender as razões de nossa megadiversidade”, escreve Rodrigues, em um resumo do projeto.
“As espécies que vivem no alto do Pico da Neblina não têm absolutamente nada a ver com as espécies que vivem na floresta abaixo dele”, descreve Rodrigues. “Ou seja, no momento em que elas se isolaram no alto da montanha, a floresta que enxergamos hoje não estava lá.” Uma das descobertas mais surpreendentes da pesquisa até agora, segundo ele, é que os répteis e anfíbios que hoje vivem isolados no Pico da Neblina são muito mais próximos (do ponto de vista evolutivo) de espécies da Mata Atlântica e dos Andes do que da própria Amazônia, refletindo conexões que existiram entre esses biomas no passado distante.
Fontes: Jornal da USP, Veja.
Foto: Ivan Prates.