Uma análise inédita de ((O))Eco mostra que uma cobertura precária de reservas ecológicas, a urbanização, a lenta adoção de políticas públicas ambientais e mudanças nas regras de ocupação costeira encolhem a capacidade de municípios para enfrentar a crise climática. Tais fatores somados ampliam gravemente os riscos às pessoas e à biodiversidade.
As alterações do clima já não são uma possibilidade futura. Tormentas, calorão, secas e enchentes estão cada vez mais fortes e comuns. Tragédias recentes apontam que os municípios margeando o Atlântico são ainda mais sujeitos ao mau humor climático, causado por poluentes que reforçam o efeito estufa e elevam a temperatura planetária.
Do fim de 2021 ao início deste ano, tempestades arrasaram o sul da Bahia. Milhares de pessoas ficaram desabrigadas e feridas. Em abril, chuvaradas levaram bairros e vidas humanas em Angra dos Reis (RJ). Em agosto, um ciclone destelhou casas e prédios, danificou embarcações e entulhou as ruas de Itapoá (SC).
Tais episódios se encaixam num estudo da Carbon Disclosure Project, Ong que ajuda cidades e empresas a divulgar seus impactos ambientais, apontando que quatro em cada cinco cidades no mundo já enfrentam ondas de calor e inundações. Mas os prejuízos não se restringem às urbes. Populações rurais e tradicionais também são vítimas.
Pescador artesanal na Reserva Extrativista de Canavieiras, na Bahia, Carlos Alberto dos Santos, o “Carlinhos”, conta que a crise do clima mudou regimes de chuvas e de ventos, a reprodução e a migração de peixes como dourado e guarajuba, a quantidade e a variedade das espécies pescadas. “As mudanças climáticas já estão aqui”, avisa.
“Isso complicou nossa capacidade de perceber as mudanças no tempo. Interferiu muito na vida de comunidades em todo o litoral brasileiro”, completa Santos, um dos coordenadores da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem).
Enfrentar tais cenários em municípios litorâneos pede maior proteção de dunas, praias, restingas, mangues e demais áreas naturais. Isso amenizará o calor, conterá a intensidade dos ventos e fará frente à subida do mar pelo derretimento de gelo estocado na Groenlândia e nos polos sul e norte, com a subida da marca no termômetro global.
Todavia, as reservas litorâneas não são bem distribuídas e não protegem certas regiões biodiversas ou mais populosas. Os dados são de uma análise exclusiva de ((O))Eco sobre a extensão e a qualidade da proteção ambiental nos 280 municípios defronte ao mar no país. A lista é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e tem 14 capitais.
O painel de cientistas do clima das Nações Unidas, o IPCC, avisa que o nível do mar já subiu 20 cm no século passado e, a cada 15 cm adicionais, cresceria em 20% o número de pessoas sujeitas a inundações. Sem ações reais contra a crise climática, em 2100 o mar pode estar 1,3 metro acima da cota atual.
A elevação afetará sobretudo as regiões Norte e Nordeste, mais suscetíveis a variações de maré, como do Oiapoque (AP) à São Luís (MA), Morro de São Paulo e Porto Seguro (BA), mas igualmente áreas como Macaé, Rio das Ostras e o entorno da Baía da Guanabara (RJ), Garopaba, Tubarão e Laguna (SC), e até o Delta do rio Jacuí (RS).
“Sem ampliar efetivamente a proteção do litoral, quando o mar subir serão necessários ainda maiores investimentos em infraestrutura e até deslocar populações”, destaca Pedro Walfir Souza Filho, doutor em Geologia e Geoquímica pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Áreas mais importantes para conservar a biodiversidade ao longo da costa.
Rios poluídos ou enfraquecidos pelo assoreamento e barramentos de hidrelétricas levam menos nutrientes à vida marinha, também ameaçada pela acidificação, calor excessivo e outros efeitos climáticos.
Um exemplo vem da foz do rio São Francisco (AL-SE), onde o farol e a vila do Cabeço foram tragados pelo mar. O povoado era do fim do Século 19. Na bacia do manancial, as chuvas caíram 30% nas últimas décadas. Efeitos similares ocorrem nos deltas de rios como Jequitinhonha, Paraíba do Sul e Parnaíba. A gestão de reservas ambientais é outro entrave.
Os recursos para proteger ambientes e indígenas e combater o desmate são os menores em 17 anos mostra um levantamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Socioambiental (ISA). Em 2014, R$ 13,1 bilhões foram separados para tais ações, contra apenas R$ 3,7 bilhões em 2021. A queda foi de 71%.
Além de manter a vida selvagem, áreas marinhas preservadas guardam recursos minerais, pesqueiros e biotecnológicos. “Metade do oxigênio que respiramos, quase todo o transporte global de cargas e o regime de chuvas dependem dos oceanos”, completa Alexander Turra, da USP.
Das formações mais relevantes para a biodiversidade marinha, os mangues se estendem do Amapá a Laguna (SC). Dali em diante, se convertem em marismas. “Mangues são sumidouros naturais de carbono e a primeira barreira contra a erosão costeira”, explica Walfir Souza Filho, da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Ressaca política
Cerca de 53 milhões de brasileiros, ou ¼ da população, vivem em municípios costeiros, mas muitos governos não os reconhecem como alvos de impactos climáticos. “As políticas continuam sendo feitas por um clima que não existe mais”, destacou Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, numa apresentação em outubro à chapa Lula-Alckmin.
Projetos de lei e para emendar a Constituição (PEC) querem repassar da União aos estados e municípios os ‘terrenos de marinha’. Eles ocupam uma faixa de 33 metros a partir da maré alta e somam cerca de 500 mil imóveis no país, ou 10% de nossas praias. A PEC é relatada no Senado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
A transferência pode deixar essas praias na mira da privatização, da grilagem e da pressão imobiliária. Afinal, a medida abre alas à construção de prédios, condomínios, clubes e resorts à beira mar, inclusive com cassinos. Hoje vetados, os ‘jogos de azar’ podem ser regularizados no país por outro projeto de lei, também já no Senado.
Em setembro, o ministro da Economia Paulo Guedes engrossou o lobby pela privatização das praias. Ao Flow Podcast, afirmou que “tem um grupo de fora que quer comprar uma praia numa região importante do Brasil e quer pagar US$ 1 bilhão. Aí você chega lá e pergunta: vem cá, vamos fazer um leilão dessa praia? Não, não pode, isso é da Marinha”.
“As mudanças propostas no licenciamento desconsideram a crise do clima e podem levar ainda mais obras e outros empreendimentos danosos aos ambientes costeiros”, avalia Turra, da USP. “Isso integra um movimento para revogar normativas que dão racionalidade mínima à gestão ambiental no país”, arremata o pesquisador e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.
“Toda a sociedade brasileira precisa se responsabilizar e agir. O Plano A tem que ser lutar para que o mar não suba e a tudo destrua. É seguir na comunidade preservando a restinga, os mangues, os recursos naturais. Não há Plano B”, completa o pescador artesanal.
Fonte: ((O))Eco.
Foto: Tiago Muraro / Unsplash.