Litoral à venda: como o cinema e a música denunciam o turismo predatório

A zona costeira, em grande parte do mundo, é palco de disputas históricas que envolvem processos contínuos de valorização territorial e reconfiguração dos usos e sentidos mercantilistas do litoral. Longe de ser um fenômeno recente, a apropriação seletiva das faixas costeiras está enraizada em legados coloniais e projetos de modernização. Essa disputa não se dá apenas pela terra física, mas também pelos modos de vida, saberes e relações simbólicas que envolvem o mar como bem comum e patrimônio coletivo.

É difícil imaginar que o nosso contato com as praias, experiências que nos fazem tão bem, possa causar impactos negativos profundos aos ecossistemas e às populações locais. Mas sim, pode. O turismo de massa vem pressionando ambientes marinhos sensíveis, como os manguezais e os recifes de corais, essenciais para a reprodução de diversas espécies e fonte de sustento de comunidades, além de acelerar processos de ocupação em áreas fundamentais para a proteção da linha de costa.

A atividade sobrecarrega também infraestruturas urbanas que, muitas vezes, já são insuficientes para atender à população residente, como o abastecimento de água, energia e saneamento básico. E, mais recentemente, contribuindo mais ainda para a crise imobiliária com o avanço dos aluguéis por temporada. Essa realidade, embora frequentemente invisibilizada, aparece de forma sutil na cultura pop e em filmes e séries bem conhecidos.

Música, filmes e séries

A série White Lotus, ambientada em destinos turísticos de luxo como o Havaí, Sicília e Tailândia, expõe com crueza a lógica de consumo que guia o turismo predatório. Na narrativa, turistas ricos ocupam espaços paradisíacos, transformando a paisagem e o cotidiano em produtos, enquanto os trabalhadores locais dos resorts observam, muitas vezes impotentes, a exploração silenciosa de seus territórios. A série reflete, de forma sofisticada, as dinâmicas de poder que sustentam o turismo contemporâneo: um jogo de privilégios, desigualdades e apagamentos simbólicos.

Em Lilo & Stitch (2002), um clássico da Disney, a protagonista Lilo se diverte fotografando pessoas brancas em praias lotadas do Havaí, um território historicamente tratado como destino paradisíaco e exótico, explorado pelo turismo predatório. Shows de hula com sutiãs de coco e colares de flores reforçam estereótipos sobre a cultura local, a transformando em espetáculo para visitantes.

Uma cena que foi deletada da versão final explica o comportamento de Lilo. Cansada de ser incomodada – e fotografada – por conta da sua “aparência nativa”, ela busca seus próprios meios de espantar os turistas da praia. Na ocasião, a Lilo, acompanhada do Stitch, chega na praia, que está lotada de turistas, e grita “Atenção turistas, a sirene de tsunami vai alertar que ondas de 100 pés estão chegando. Quando vocês ouvirem, é melhor correrem [..] Turistas, se preparem para morrer”. Desesperados, os turistas começam a correr e deixam a praia. Não se sabe o motivo real da cena não ter ido ao ar, mas rumores da época apontavam o fato da Disney não querer afrontar alguns telespectadores. De toda forma, na versão final, acompanhamos a luta de sua irmã mais velha, Nani, para conseguir um emprego e manter a guarda de Lilo. As oportunidades disponíveis são quase todas voltadas ao atendimento da demanda turística, muitas delas sazonais para os períodos com mais visitantes.

A crítica é compreendida ao lembrarmos que o Havaí foi anexado aos Estados Unidos por meio de um golpe e que sua cultura indígena foi mercantilizada e deslocada das decisões políticas. Enxergar o arquipélago como um mero resort a céu aberto é uma forma pobre e colonialista de ignorar as complexidades e os direitos dos kānaka ʻōiwi (havaianos nativos).

Esse alerta também tem sido feito pelo artista porto-riquenho Bad Bunny em seus últimos álbuns. O mais recente, Debí Tirar Más Fotos (2025), rapidamente se tornou um sucesso nas redes sociais pelo ritmo envolvente e pelas letras provocativas. As faixas fazem críticas explícitas à influência dos Estados Unidos em Porto Rico. O país é um território caribenho não incorporado, o que significa que pertence aos Estados Unidos, mas não é considerado um estado federado. Seus habitantes são cidadãos norte-americanos, porém não têm direito a votar nas eleições presidenciais e não possuem representantes com voto no Congresso. Parece justo?

Com versos que comparam o destino da ilha ao do Havaí, que perdeu sua soberania após o avanço do turismo e da especulação, Bad Bunny emite um alerta sobre o risco de apagamento cultural e dominação política. Em uma das faixas, Lo que pasó a Hawaii, ele diz “Eles querem tirar meu rio e a praia também. Querem que meu bairro e seus filhos saiam. Não, não larguem a bandeira nem esqueçam o lelolai. Não quero que façam com vocês o que aconteceu com o Havaí”.

Ao longo do álbum, o artista expressa uma mistura de saudade de casa e indignação diante do avanço do turismo predatório e da gentrificação que vêm afetando Porto Rico. Na faixa Turista, ele fala “Na minha vida você foi um turista, você só viu o melhor em mim e não o que eu sofria”. Um sentimento pertinente à muitos residentes de territórios ocupados pelo turismo.

Sua crítica é direta: “Puerto Rico está se apagando” e não é só por falta de luz elétrica, mas pela perda da sua soberania, espaços e pertencimento. Seu trabalho ganha ainda mais potência ao ser reconhecido internacionalmente como um dos primeiros artistas pop a colocar o turismo no centro da crítica social.

No Brasil, a situação não é distinta, com destaque para a costa nordestina, região mais procurada nas altas estações, devido ao sol forte, águas quentes e ventos perfeitos para a prática de esportes aquáticos. Diversos territórios enfrentam tensões permanentes entre o direito à terra e o capital privado. A construção de hóteis e outros meios de hospedagem escondem algumas realidades. Ecossistemas naturais suprimidos e devastados, ameaças e violências devido à grande especulação e modos de vida tradicionais sendo completamente impactos e substituídos por uma lógica de consumo e exclusividade.

A combinação entre ciência e arte revela, portanto, um retrato complexo e inquietante do turismo de massa nas zonas costeiras. O turismo, nesse contexto, é apresentado como uma nova forma de colonização: silenciosa, elegante e altamente lucrativa, mas fortemente devastadora. O que está em jogo não é só a manutenção da paisagem e do ecossistema marinho, mas o direito à vida, à memória e à identidade.

Conhecer sem destruir: é possível?

Mesmo com as melhores intenções, ao visitar destinos marcados pelo turismo de massa, acabamos contribuindo com o avanço desses processos. Surge então, uma pergunta urgente: é possível nadar contra essa maré destrutiva? A resposta é: depende.

É importante reconhecer que todo movimento, especialmente em locais sensíveis e já saturados, pode gerar impactos negativos. Porém, também estamos aprendendo que é possível fortalecer iniciativas que buscam diminuí-los ao mesmo tempo que criam novas possibilidades, caminhos e soluções coletivas.

Alternativas mais justas e conscientes vêm ganhando espaço em diferentes partes do mundo, especialmente na América Latina e em países do Sul Global. Como o turismo comunitário, que se destaca por colocar as populações locais no centro das decisões sobre a atividade turística. Nessa abordagem, a preservação dos ecossistemas, a valorização da cultura local, a autonomia econômica e o fortalecimento das comunidades são valores fundamentais. É uma forma de conhecer que respeita, envolve e beneficia quem realmente vive no e do território.

Exercer um olhar crítico sobre nossas escolhas como turistas é essencial. Buscar experiências mais autênticas e responsáveis não apenas contribui para a construção de outros futuros, mais justos e coletivos, mas também proporciona vivências mais ricas e imersivas, longe dos estereótipos e das experiências padronizadas “para turista ver”. E cá entre nós: é bem mais legal!

De toda forma, o futuro dos oceanos, do litoral e dos nossos diversos ecossistemas naturais espalhados pelo mundo depende da nossa capacidade coletiva de escutar os sinais da natureza e as vozes dos povos que resistem em meio à tantas explorações. E como nos lembra o trecho final da música “El Apagón” de Bad Bunny: “Eu não quero ir embora daqui. Eles que devem ir. Eles ficam com o que me pertence [..] Esta é a minha praia, este é o meu sol. Esta é a minha terra, isso é o que eu sou”.

Fonte: ((O))eco.

Foto: Bruna Prado/MTUR.

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