O ponto climático do não retorno

No início de julho, a temperatura diária média global bateu recordes, atingindo 17,23 graus Celsius (ºC) e permanecendo por vários dias acima da temperatura mais quente até então registrada, 16,92 ºC, medida em meados de agosto de 2016. O mês anterior já havia sido o mês de junho mais quente observado, e há uma boa chance de que agosto também quebre o recorde mensal de temperatura média.

Essas temperaturas elevadas resultam de uma combinação do retorno do fenômeno climático El Niño com o aquecimento global provocado pela emissão excessiva de gases de efeito estufa. Durante o El Niño, que se repete a cada três a sete anos, os ventos alísios diminuem acima do oceano Pacífico tropical, permitindo que as águas mais quentes viajem para o leste através do Pacífico equatorial. Isso provoca o aquecimento mais do que o normal de algumas regiões do planeta.

Junta-se ao efeito do El Niño um cenário de uma atmosfera mais quente por conta da ação humana, e o resultado são ondas de calor, incêndios florestais, inundações ou ciclones tropicais exacerbados, entre outros eventos climáticos extremos.

O calor deste verão no Hemisfério Norte já afetou milhões de pessoas. Na Europa e na América do Norte as temperaturas estiveram em julho, respectivamente, entre 2 e 2,5 ºC mais quentes do que níveis médios, um calor virtualmente impossível sem a contribuição da mudança climática induzida por humanos.

No Canadá, a onda de calor fez com que a temporada de incêndios florestais começasse muito cedo e de maneira mais extensa e severa, gerando episódios de fumaça intensa em várias regiões do país e fora, chegando a atingir a cidade de Nova York, a quase 2 mil quilômetros de distância dos focos de incêndio.

Dezenas de pessoas perderam a vida na Coreia do Sul em consequência de inundações e deslizamentos de terra. A China passou por uma nova onda de calor escaldante menos de duas semanas depois que as temperaturas quebraram recordes em Pequim. O calor extremo na Índia foi associado a mortes em algumas de suas regiões mais pobres. México, Reino Unido, Itália e Grécia e suas populações também foram bastante afetados.

Abrigando meio bilhão de pessoas, a região do Mediterrâneo está sendo um dos grandes focos da crise climática. Segundo editorial do jornal Le Monde, o calor extremo registrado em julho promove uma “ameaça existencial”, frase cunhada a partir de pronunciamento de Joe Biden, diante da onda de calor extremo que se alastrou também pelo centro-oeste dos Estados Unidos.

O editorial do Le Monde vai fundo nas causas do aquecimento global, afirmando ser indesculpável a persistência de um alto consumo de petróleo e gás.

As multinacionais do petróleo estão claramente recuando em seus compromissos para conter o volume de extrações e emissões. Demonstram que pretendem prosseguir lucrando, não importa os efeitos nefastos que isso possa provocar.

Autoridades que acompanham os bastidores das negociações climáticas, inclusive do G20, afirmam que esperar a livre adesão do setor para a transição ecológica é pura ingenuidade. Nada ocorrerá sem a responsabilização dos grandes poluidores pelos danos que estão causando, com a retirada de subsídios e forte taxação do setor.

Na semana passada, em editorial, o Los Angeles Times afirmou que “muitas pessoas poderosas no governo, empresas e organizações civis se apegaram à fantasia de que algumas das empresas mais poderosas e destrutivas da história acabariam enfrentando a realidade e se transformariam por iniciativa própria em operações limpas e sustentáveis”.

O Acordo de Paris passou a ser uma agenda secundária. Quem se senta à mesa de negociação faz o discurso da sustentabilidade, mas rema em direção à sua segurança doméstica e interesses geopolíticos. Nesse estado de beligerância, associada à resistência econômica dos países e setores produtores de petróleo, gás e carvão, nada de significativo em reduções deverá ser esperado para a COP28, que ocorrerá no final do ano em Dubai.

A reação do setor fóssil está iniciando mais um revival de negacionismo. A principal estratégia é lançar dúvidas sobre a certeza científica defendida pelo IPCC. A humanidade assistiu algo semelhante com relação aos estertores da indústria do tabaco. Espernear, dissimular, contratar pesquisas, declarações, financiar batalhões de advogados e toda a sorte de manobras para prolongar a exploração massiva de carvão, óleo e gás. Mas não é só. No Brasil unem-se ao coro “mortido” os fortes interesses de uso ambicioso do solo por setores retrógrados da agropecuária, responsável pelo desmatamento ilegal e que vem se fortalecendo dentro do poder legislativo nacional.

Mas não são apenas as pessoas que sofrem os efeitos do calor excessivo. As águas da costa sul da Flórida atingiram 38,38 ºC, um novo recorde global. Nessas temperaturas, ecossistemas críticos de corais passam por branqueamento, o que os coloca em risco de doenças e morte. Além disso, as altas temperaturas da água promovem a proliferação de algas tóxicas, o que pode diminuir a concentração de oxigênio e levar à morte em massa de peixes.

No Hemisfério Sul, onde ainda é inverno, por enquanto a situação é mais tranquila, mas já são previstos impactos potencializados pela combinação El Niño-mudanças climáticas, o que inclui incêndios florestais provavelmente recordes na Austrália até dezembro, assim como secas acentuadas na América do Sul e no sul da África.

Pontos de inflexão

De acordo com cientistas que estudam os tipping points, ou pontos de inflexão, os eventos amplificados de temperatura observados atualmente se aproximam do ponto de inflexão climática. Esse ponto representa um limiar crítico que, quando ultrapassado, leva a grandes e muitas vezes irreversíveis mudanças no sistema climático, o que pode afetar o equilíbrio de sistemas naturais e desencadear pontos de inflexão ecológica.

Com o aumento da temperatura global, as camadas de gelo polar, a circulação do oceano Atlântico, as florestas tropicais e boreais e os recifes de coral correm mais e mais o risco de colapsarem e contribuírem para o próprio aquecimento global, ou seja, os tipping points se retroalimentarão. Não bastassem as temperaturas extremas, vários outros estressores podem contribuir para que os pontos de inflexão ecológica aconteçam muito mais rápido do que se previa.

No caso da Amazônia, por exemplo, o aumento da temperatura média pode afetar diretamente o ciclo hidrológico, intensificando os impactos do desmatamento e gerando períodos de seca mais longos, o que contribui para queimadas mais extensas e intensas.

Além do desmatamento e do fogo, outros estresses como pastejo excessivo e degradação do solo, expansão da agricultura e do uso de insumos nitrogenados agrícolas, contribuem para a liberação de metano, compostos nitrogenados e CO2, ou seja, mais gases de efeito estufa na atmosfera, tornando o clima mais quente e seco e acelerando a perda de florestas em um ciclo vicioso.

Em junho, durante dez dias, negociadores de quase 200 países se reuniram em Bonn, na Alemanha, para tentar fechar sem sucesso a agenda provisória para a COP 28, que será realizada em Dubai, no final do ano. Embora todas as partes signatárias da Convenção da ONU para combater a mudança climática concordem que uma transição energética seja necessária, as negociações foram paralisadas devido a divergências sobre o financiamento do combate às mudanças climáticas.

Esses resultados podem se repetir durante a COP28 e comprometer as principais metas do Acordo de Paris de limitar o aquecimento a apenas 1,5 ºC e impedir que as temperaturas médias globais subam mais de 2 ºC acima dos níveis pré-industriais até o final do século.

Sem acordo, ou sem seu cumprimento, o planeta continuará a aquecer, e é provável que ultrapassará 1,5 ºC no curto prazo. Assim, a “amostra” de calor recorde vivida no Hemisfério Norte atualmente ganhará amplitude global e poderá se tornar o novo normal de temperatura.

Fonte: Revista Galileu, DW, ONU News, CNN.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.