Entre idas e vindas, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2011 volta à baila nos últimos anos. Propõe a extinção do “instituto jurídico do terreno de marinha e seus acrescidos” e dispõe “sobre a propriedade desses imóveis”.
Essas áreas pertencem à União, mas grande parte delas é ocupada por particulares que pagam pela sua utilização. A PEC propõe a transferência da propriedade de parte desses imóveis para estados, municípios e os atuais ocupantes. Mas o que aparentemente pode ser uma simples mudança de titularidade esconde uma grande ameaça.
Já os terrenos acrescidos de marinha correspondem àqueles que tiverem sido formados, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha. Na prática, os imóveis defrontantes ao mar, seja uma praia ou um manguezal, possuem uma área não edificável de domínio da União, da qual os ocupantes podem usufruir mediante o pagamento de um tributo federal.
A manutenção dos terrenos de marinha enquanto bens da União são, portanto, mais do que relevante na atualidade, pois eles são um aliado estratégico para adaptação às mudanças climáticas e redução da vulnerabilidade da zona costeira frente a eventos extremos e aumento do nível do mar.
O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), publicado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) em 2015, destacou diferentes impactos das Mudanças Climáticas sobre a Zona Costeira brasileira. Dados disponibilizados pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo revelam um aumento do nível médio do mar de cerca de 4,1 mm por ano.
Essa tendência vem sendo acompanhada pelo aumento de eventos oceanográficos extremos, conforme avaliação feita pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Os últimos dados mostrados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) demonstram que mesmo que o mundo pare de emitir os gases do efeito estufa agora, os impactos causados pela absorção de calor pelo oceano, como o aumento do nível do mar, ainda serão sentidos por décadas.
Dessa forma, é imprescindível que as áreas costeiras comecem a ser recuperadas e restauradas (restingas, manguezais e apicuns), recuperando sua função ecológica não só de absorção de carbono, mas como barreiras naturais à elevação do nível do mar.
E exatamente indo mais uma vez na contramão da história, quando o mundo assiste às diversas tragédias causadas por eventos extremos, o Brasil resolve colocar uma PEC para fragilizar mais e mais todo esse patrimônio da União. Com ela, os processos erosivos serão intensificados, ampliando o fenômeno conhecido como “estreitamento da costa” (coastal squeezing), provocando a perda da capacidade de proteção da costa contra eventos extremos, atingindo o turismo ao longo do tempo, com a supressão de praias.
Além disso, a importância ecológica desses ambientes será comprometida a médio e longo prazo, causando prejuízos para a pesca e intensificando as mudanças do clima. Em especial, os terrenos de marinha estão na linha de frente do movimento do oceano costa adentro, tornando-se um ativo essencial como proteção diante de atividades humanas invasivas, para salvaguardar as regiões dos efeitos climáticos e, ao mesmo tempo, zelar pelos investimentos público e privado.
Quanto ao repasse dos terrenos de marinha para os ocupantes atuais, isso levará a um processo de edificação para diferentes finalidades privadas, caminhando no sentido oposto àquele preconizado pelo PNA e pelo Programa Nacional para Conservação da Linha de Costa (PROCOSTA).
E aí podemos perguntar: o que o país ganha com esse repasse? A resposta é simples: nada. A arrecadação vultosa e episódica com o repasse desses terrenos para os atuais ocupantes não tem destino explícito ou vinculado, especialmente no que tange aos investimentos que devem ser feitos para implementação do PNA e do PROCOSTA, por exemplo.
Além dos elementos apresentados acima, a PEC é apoiada pelos setores imobiliário e turístico, que desejam ocupar de forma mais intensiva os espaços costeiros mais nobres, defrontantes ao mar, sem considerar as consequências advindas para os próprios setores. Assim, a motivação para essa PEC não é estrategicamente pautada nas diferentes funções (econômica, ambiental e social) dos terrenos de marinha.
Hoje a União tem autonomia para dar outras funções a esses espaços que não uma finalidade privada. Entretanto, com a transferência da propriedade para os ocupantes, a necessidade de desocupação posterior, para a criação de áreas de recuo da terra em relação ao avanço do mar, implicará em custos com desapropriação, trazendo prejuízos ao erário.
A intensificação dessa ocupação, por conseguinte, trará prejuízos adicionais não apenas aos novos proprietários desses imóveis, mas também à União, ocasionando outro tipo de problema para o poder público: a pressão para realização de obras que recuperem esses ambientes e que protejam as propriedades, como no caso da praia do Balneário Camboriú, em Santa Catarina, com seus custos e impactos associados.
A supressão das dunas e praias por calçadões e avenidas beira-mar durante as últimas décadas acarretou severos impactos no ambiente praial, tais como a diminuição da área de lazer da praia central e o sombreamento da praia, acarretando custos milionários para o seu alargamento. Mas essa não é a realidade da grande maioria dos municípios brasileiros que não possuem condições financeiras sequer de realizar um projeto desse porte.
Outro exemplo é o que vem ocorrendo na cidade de Atafona, litoral norte do estado do Rio de Janeiro, onde o mar avança em média 2,7 metros por ano, mas já chegou a aumentar até oito metros em alguns anos, como entre 2008 e 2009, causando diversos prejuízos e transformando a localidade em uma cidade fantasma.
Essas obras são complexas e caras, demandando um processo de antecipação e planejamento para que o recurso público seja utilizado de forma apropriada. Portanto, a PEC não vem resolver problemas. Ela vai intensificá-los e diversificá-los em benefício da privatização de lucros imediatistas e ao compartilhamento de prejuízos com toda a sociedade.
Melhor seria fortalecer a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) para que o recolhimento do tributo federal derivado do uso desses espaços por entes privados pudesse ser uma das fontes de receita, preparando o país para lidar com as mudanças que já estão causando imensos prejuízos a ele.
Fontes: ((O))eco, Coalizão Ciência e Sociedade, Instituto Talanoa, CNN Brasil. Agência Câmara de Notícias