A paisagem poderia ser a de um cartão postal do deserto mexicano. Com o sol a pino, um campo verde de cactos cobre os arredores empoeirados de Camémbaro, comunidade agrícola no Estado de Michoacan.
“Desde a época pré-hispânica o nopal acompanha as refeições. Por tradição e cultura consumimos o nopal”, diz Israel Vázquez onde há 20 anos o nopal foi semeado.
Esse cacto verde, que tem em seu interior uma polpa viscosa, é a base de vários pratos na gastronomia mexicana: sopas, saladas, assados e até doces. É usado também em medicamentos contra a hipertensão e problemas intestinais, fabricação de xampu contra a queda de cabelo, géis dermatológicos e sucos dietéticos.
O Nopal, como esse tipo de cacto com folhas ovais é conhecido em todo o país, não cresce apenas nessas terras. Ele pode ser encontrado em toda a região mesoamericana e é tão emblemático que está estampado na bandeira nacional do México.
Os resíduos não comestíveis desse cacto são normalmente descartados, mas, nesta cidade, os moradores viram o potencial de transformá-los em uma nova fonte de combustível.
Em 2009, o empresário local Rogelio Sosa Lopez, já bem-sucedido no ramo de fabricação de tortilhas a partir de farinha de milho, fez uma parceria com Miguel Angel Ake para fundar a Nopalimex, empresa que cultiva cactos como uma alternativa mais barata ao milho.
Eles descobriram que as plantações de Nopal produzem entre 300 e 400 toneladas de biomassa por hectare em terras menos férteis e até 800 a 1.000 toneladas em solos mais ricos em nutrientes. O nopal também requer uma quantidade mínima de água, e seus resíduos, se processados adequadamente, podem ser transformados em biocombustível.
“Estamos semeando Nopal por três razões. A primeira é social: ele gera empregos e evita a emigração. Em segundo lugar, do ponto de vista econômico, reduz o custo do processamento industrial de produtos à base de nopal. Por último e mais importante, há a razão ambiental”, explica Ake.
Como funciona a produção
Ake começou a explorar biocombustíveis há mais de 40 anos, mas a experimentação com cactos teve início em 2007. Agora, sua empresa está produzindo combustível suficiente para abastecer os edifícios que processam todas as partes do Nopal de maneira sustentável.
Mas ele planeja ir além. Já assinou um termo de compromisso com o governo local de Zitacuaro, no Estado de Michoacán, para fornecer combustível à base de cacto para veículos oficiais, de carros de polícia a ambulâncias.
“Com a quantidade de Nopal que temos no México e uma produtividade de mais de 100 toneladas de gás por acre, acreditamos que (o nopal) pode acabar substituindo o uso tradicional de gás e combustível de fontes não renováveis”, diz ele.
O processo é relativamente simples. Primeiro, os cactos são cortados e processados para extração da farinha, que é usada na fabricação de tortilhas.
Os resíduos não comestíveis da planta que restam são então misturados com esterco de vaca em um bioprocessador, tanque de fermentação que aquece a polpa do cacto desperdiçada. Em seguida, o combustível é destilado a partir do líquido restante e coletado por meio de tubos em um tanque.
É provável que o uso de resíduos agrícolas desempenhe um papel cada vez maior na produção de combustíveis, diz a pesquisadora Teresa Domenech Aparisi, Professora de Ecologia Industrial e Economia Circular do Instituto de Recursos Sustentáveis da University College London (UCL), no Reino Unido.
“Temos que ampliar os biocombustíveis sem aumentar o consumo de água”, afirma. “O futuro deve se voltar especialmente para os resíduos agrícolas e industriais.”
Esse método de produção de combustível a partir de cactos é um exemplo muito bom, acrescenta Domenech Aparisi, porque qualquer tipo de produto agrícola geralmente gera uma quantidade enorme de resíduos após a colheita.
Um dos atrativos desse processo é que ele não cai em uma grande armadilha da produção convencional de biocombustíveis.
As culturas de milho, cana-de-açúcar, soja e dendê, que representam 97% dos biocombustíveis em todo o mundo, são frequentemente cultivadas em grandes monoculturas.
Isso quer dizer que ocupam terras que poderiam ser usadas para produzir alimentos, destroem habitats e levam a ecossistemas menos equilibrados, além de fazerem uma forte pressão sobre os recursos hídricos e serem associadas à seca.
O diferencial do sistema de cactos de Ake é que ele utiliza resíduos de outra indústria, em vez de cultivar uma lavoura especificamente para produzir combustível.
“Você tem o produto, mas também o subproduto, que pode ser uma fonte de energia”, explica Domenech Aparisi.
Economia circular
A mudança em direção ao biocombustível de cacto é parte de um esforço para acabar com a ideia de “resíduo” como algo inútil que você deve descartar.
“Atualmente, temos um sistema muito linear. Você extrai produtos da natureza, os transforma e, em um período muito curto de tempo, às vezes um pouco mais, eles acabam virando resíduos”, diz Domenech Aparisi.
“Em uma economia circular, você tenta manter os recursos e produtos no sistema pelo maior tempo possível, e depois você tem os resíduos para regenerar esses recursos e recuperá-los para o sistema.”
Outro bom exemplo de como os biocombustíveis poderiam funcionar em uma economia circular é o café. Quase 500 mil toneladas de resíduos de café são jogados fora todos os anos só no Reino Unido.
Na Escócia, dois empresários estão usando borra de café para extrair óleo como uma alternativa sustentável ao dendê. Em outras partes do Reino Unido, a empresa de tecnologia limpa Bio-bean coleta resíduos de café e os transforma em combustível.
Desde 2017, pesquisadores da Universidade de Coventry, também no Reino Unido, estudam como iniciativas inovadoras relacionadas ao café podem nos ajudar a avançar em direção a sociedades sustentáveis.
Em um dos projetos, eles descobriram que, do ponto de vista da economia circular, os grãos de café torrados podem ser reutilizados como base de alguns adubos e são uma boa base para o cultivo de cogumelos. No entanto, também constataram que ainda há pouco gerenciamento de resíduos em todo o setor.
Para as indústrias de biocombustíveis se tornarem realmente circulares, ainda há alguns obstáculos significativos.
“Um dos problemas é a infraestrutura para coletar e depois extrair energia da biomassa”, diz Domenech Aparisi.
E isso se refere tanto ao gerenciamento de resíduos a nível doméstico, quanto industrial.
“A expansão não acontece porque em muitos lugares as pessoas não se preocupam com o desperdício. Então, como você realmente define a estrutura e a gestão para que isso aconteça?”
Ouro verde
No México, Juan Francisco Perez pesquisa há mais de uma década como produzir biocombustível a partir de diferentes plantas. Ele agora lidera projetos no Cinvestav, centro nacional de pesquisa, analisando diferentes tipos de resíduos de alimentos para produção de energia.
“Quando se trata de cacto Nopal, eles são muito úteis para produzir combustível, porque são ricos em açúcar, o que é realmente importante para produzir biocombustível e gás biometano. Também é muito conveniente porque no México há muitas terras áridas e semidesérticas, por isso é impossível ter outros tipos de lavouras”, diz Perez.
“O nopal precisa de muito pouca água”, acrescenta.
As múltiplas propriedades do Nopal levaram Ake a descrever esse tipo de cacto como “ouro verde”. Até agora, a Nopalimex funciona com a energia que produz a partir do biogás.
“Já estamos produzindo entre sete e oito toneladas de tortilhas com Nopal e energia a partir de Nopal todos os dias, mas pesquisadores e agricultores ainda estão desenvolvendo usos diferentes para este cacto, por exemplo, como uma alternativa às embalagens, tecidos e resinas de plástico”, conta Ake.
E não para por aí. Segundo ele, cientistas estão estudando usar resíduos de abacate no Estado de Michoacan e Sargasso como possível fonte de biocombustível.
Embora todos compartilhem o otimismo de que os biocombustíveis podem desempenhar um papel importante na substituição dos combustíveis fósseis, Domenech Aparisi acredita que é preciso alinhar as expectativas com a realidade.
“Eles não vão substituí-los completamente. Teremos tecnologias renováveis, e as biomassas terão uma porcentagem dentro dessas tecnologias na substituição dos combustíveis fósseis”, diz ela.
“Já estamos em transição para economias de baixo carbono, mas os biocombustíveis não serão a única solução. Terão que ser combinados com outras formas de geração de energia a partir de recursos renováveis.”
Isso é particularmente importante porque os biocombustíveis à base de resíduos estão entre os tipos de combustível mais sustentáveis que existem, acrescenta Danay Carrillo, pesquisador do Instituto Tecnológico de Monterrey, no México.
“Para que os biocombustíveis sejam sustentáveis, é muito importante que pelo menos seu primeiro uso seja para consumo humano, em vez de cultivar matéria orgânica apenas para produção de combustível, o que apenas aumentaria o consumo de água e o uso da terra”, explica.
Portanto, não devemos nos surpreender ao encontrar cada vez mais resíduos sendo reaproveitados como fonte de combustível, sejam de cactos ou de grãos de café. Na verdade, se pretendemos fazer dos biocombustíveis uma parte essencial da matriz energética, precisamos deles.
Com o auxílio de estratégias como essas, Carillo estima que, em uma década, os biocombustíveis de resíduos orgânicos poderão substituir as energias não renováveis no México.
Fonte: BBC, G1, Ambiente Brasil, Climainfo.