A ‘máfia da areia’: como extração ilegal virou um negócio global?

A cada ano, a areia ilegal ajuda a erguer o equivalente a nove cidades de Nova York em concreto, asfalto e vidro, mas o custo real desse avanço urbano permanece escondido sob rios escavados, margens em colapso e comunidades intimidadas. Em 2004, o ataque sofrido por uma ativista na Índia expôs como a disputa por esse recurso aparentemente banal passou a envolver máfias armadas, corrupção em série e centenas de mortes ligadas à extração clandestina.

Nas últimas décadas, a areia se tornou o segundo recurso natural mais explorado do planeta, atrás apenas da água, com cerca de 50 bilhões de toneladas de areia e cascalho consumidas anualmente no mundo. Pesquisadores estimam que, em países em desenvolvimento, mais de 50% dessa extração ocorre de forma ilegal, deixando um rastro de destruição ambiental e de violência raramente associado ao brilho dos arranha-céus ou ao conforto dos apartamentos onde esse material termina.

O insumo invisível que sustenta o mundo moderno

Em um mercado global de areia bilionária, a areia ilegal e a extração ilegal de areia alimentam a máfia da areia, devastam rios, pressionam o concreto e ampliam o risco ambiental oculto.

O concreto das cidades, o asfalto das rodovias, o vidro das janelas e até o silício usado em tecnologias avançadas dependem de areia.

Aproximadamente 90% de toda a areia extraída é destinada à indústria da construção, alimentando um ciclo contínuo de expansão urbana em países ricos e pobres.

A escala é colossal: 50 bilhões de toneladas por ano seriam suficientes para cobrir todo o território da Argentina com uma camada de um centímetro.

Em paralelo, o planeta constrói, ano após ano, o equivalente a nove cidades do porte de Nova York, resultado de migrações em massa do campo para áreas urbanas, sobretudo em países em desenvolvimento.

Nem toda areia, porém, serve para erguer prédios e viadutos.

A areia do deserto, erodida pelo vento, tem grãos arredondados demais para formar um concreto resistente.

A mais valorizada é a areia de rios e margens, com grãos de bordas irregulares, capazes de se encaixar melhor na mistura.

É justamente essa areia, mais rara e mais valiosa, que está na mira da areia ilegal.

Como a areia ilegal alimenta um mercado bilionário e opaco

O mercado global de areia é estimado em cerca de 890 bilhões de reais, mas a falta de rastreabilidade torna quase impossível saber qual parcela desse volume vem de operações regulares e qual parte nasce da areia ilegal.

Em muitos países, o ciclo clandestino começa de forma simples, com pequenos extratores retirando material de rios, praias e margens sem licença ou em áreas proibidas.

A partir daí, a engrenagem se torna sofisticada.

A areia ilegal é misturada à areia de origem regular, entra em depósitos, atravessa estradas, chega a canteiros de obras ou é embarcada em navios cargueiros sem que ninguém consiga distinguir, tecnicamente, um grão do outro.

Na prática, poucos compradores perguntam de onde veio o material, e raramente há sistemas de controle capazes de rastrear a origem até o ponto de extração.

Esse contexto cria um negócio de risco baixo e recompensa alta.

A areia é um recurso considerado gratuito, disponível em rios e praias.

Quem tem paraça política, poder econômico ou controle territorial sobre áreas de extração consegue transformar esse recurso em lucro rápido.

É nesse ponto que a areia ilegal se conecta a redes criminais, esquemas de corrupção e violência organizada.

Máfia da areia, corrupção e mortes ignoradas

Em diversos países, a chamada “máfia da areia” passou a controlar trechos inteiros de rios e áreas costeiras, cobrando pedágios, explorando trabalhadores e intimidando comunidades locais.

O fenômeno atinge desde pequenas propriedades, onde moradores retiram areia para construir suas próprias casas, até grandes esquemas com escavadeiras, balsas e dragas operando sem licença.

Pesquisadores e ativistas relatam centenas de assassinatos ligados à areia ilegal nos últimos anos, com casos documentados em países como Índia, México, Gana e Indonésia.

Denúncias de corrupção em governos locais e regionais são recorrentes, com autoridades tolerando ou acobertando a extração clandestina em troca de subornos ou apoio político.

Rios escavados, enchentes mais severas e ecossistemas destruídos

O impacto ambiental da areia ilegal é profundo e cumulativo.

Quando a extração excede a capacidade natural de reposição dos rios, o leito se aprofunda, as margens perdem sustentação e a erosão se acelera.

Isso aumenta o risco de deslizamentos, desabamentos de encostas e enchentes mais intensas em períodos de chuva.

A dragagem em larga escala remove sedimentos, plantas, ovos de peixes e pequenos organismos do fundo do rio, aniquilando habitats inteiros, alterando a qualidade da água e afetando cadeias alimentares.

Em áreas costeiras, a retirada de areia de praias e dunas reduz a proteção natural contra tempestades e avanço do mar, deixando comunidades mais vulneráveis.

Em muitos casos, populações ribeirinhas e pescadores são os primeiros a notar as mudanças: margens cedendo, quedas bruscas no estoque de peixes e instabilidade das estruturas próximas à água.

Mas esses sinais raramente chegam ao centro das decisões econômicas, enquanto o concreto resultante da areia ilegal continua a alimentar projetos urbanos distantes das áreas de extração.

Tecnologias, alternativas e o desafio da fiscalização

Existem caminhos tecnológicos para reduzir a pressão sobre rios e praias.

É possível reciclar concreto, reaproveitando fragmentos de construções demolidas, e também produzir areia artificialmente, ao triturar rochas em pedreiras controladas.

Essas soluções, no entanto, ainda são mais caras e intensivas em energia do que a retirada direta de sedimentos de rios.

Na prática, enquanto para mais barato extrair areia de leitos naturais, a areia ilegal continuará atrativa.

O combate depende de uma combinação complexa: fortalecer órgãos de fiscalização, reduzir brechas legais, enfrentar a corrupção local, envolver comunidades no monitoramento e criar sistemas mínimos de rastreabilidade que permitam seguir o rastro do material até a origem.

Especialistas apontam que campanhas de conscientização também são essenciais, já que a maioria das pessoas desconhece que o prédio em que mora ou a avenida por onde circula podem ter sido erguidos à custa de enchentes mais graves, perda de biodiversidade e violência em regiões afastadas dos grandes centros.

Sem atenção pública, a devastação tende a continuar silenciosa, grão por grão.

Fontes: CPG – Click Petróleo e Gás, BBC News.

Foto: Divulgação.

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