Agronegócio e extrema direita impulsionam máquina de fake news sobre aquecimento global

O ano era 2016. O mais quente do registro histórico. Preocupado com os impactos do aquecimento global sobre o cultivo de soja, o então ministro da Agricultura Blairo Maggi, um dos maiores exportadores do grão, convidou o cientista Carlos Nobre para conversar com o conselho do grupo Amaggi. O ministro queria que o pesquisador fizesse uma palestra sobre o que a ciência já sabe sobre os potenciais danos das mudanças climáticas na produção agrícola, principalmente na Amazônia.

Nobre, um dos mais reconhecidos climatologistas do país e um dos maiores especialistas em Amazônia, se preparou para a missão. Conversou com outros pesquisadores, se debruçou sobre dezenas de trabalhos que traziam informações sobre a situação, elaborou a palestra e foi para Cuiabá (MT).

“Os representantes do conselho eram produtores de soja e estavam todos lá. E eu apresentei tudo, todos os riscos. Mostrei que as mudanças climáticas podem tornar toda aquela região sul da Amazônia e norte do Cerrado praticamente impossível para a manutenção de uma agricultura produtiva por causa do excesso de calor”, conta.

Nobre disse aos conselheiros da Amaggi que máximas acima de 40 ºC podem se tornar comuns naquela região, principalmente no inverno, e também na transição para o verão, que é quando se planta a soja. “Nessa temperatura, a soja tem baixíssima produtividade”, disse. E frisou: as mudanças climáticas aceleram muito a frequência de eventos extremos como secas. Já estamos vendo isso acontecer e tende a piorar.

Quando ele encerrou a apresentação e abriu para as perguntas, veio a surpresa. “Porque várias pessoas levantaram as mãos e todas falaram que não havia problema nenhum, que a soja aumenta a sua produção com o calor – o que é completamente falso – e que as mudanças climáticas não estão ocorrendo”, relata.

Meio chocado, Nobre se lembra de ter olhado para Maggi e vê-lo sem graça com a situação. Só um tempo depois ele descobriu o motivo da descrença da audiência. “Todos aqueles produtores de soja tinham recebido antes a visita dos negacionistas Luiz Carlos Molion e Ricardo Felício.”

Os nomes citados por Nobre são de dois expoentes no Brasil de um grupo pequeno, mas estridente, de pessoas ligadas à academia que negam que o planeta esteja aquecendo ou que atividades humanas seriam capazes de provocar isso. Questionam, ainda, o papel da  Amazônia na distribuição de chuvas no país, a dimensão das queimadas e dizem que o desmatamento não afeta o clima. Não é de hoje que eles se contrapõem ao consenso científico, mas por décadas tiveram poucas aparições com mais destaque. Seu alcance mudou de patamar, porém, nos últimos anos.

Além de fazerem palestras pelo país a convite de associações do setor espalhando o mito de que o aquecimento global não existe – como no evento bancado pela Aprosoja-MT que antecedeu a fala de Nobre em 2016 –, eles foram alçados à categoria de especialistas por congressistas da bancada ruralista no Congresso. Conquistaram espaço em canais não só do agronegócio, como Canal Rural, Notícias Agrícolas, Terraviva e AgroMais, ambos da Band, mas também da extrema direita, como Brasil Paralelo e Revista Oeste.

O negacionismo climático foi incorporado na máquina de desinformação da extrema direita e se expandiu no meio rural. A percepção de cientistas e pesquisadores ouvidos pela reportagem é que uma parte do agronegócio – notadamente quem está na ponta: os produtores e suas associações – se tornou refratária à discussão séria sobre o clima. Virou terreno fértil para o negacionismo e a desinformação ambiental.

Em condição de anonimato, uma liderança do agronegócio afirmou à Agência Pública que o discurso negacionista “impregnou igual mantra” no setor, principalmente entre produtores rurais. “Produtores e lideranças de produtores. A Aprosoja não consome ciência, por exemplo. Já a indústria está mais alinhada com tendências globais”, disse.

Ele aponta que isso tem reflexo direto na representação política do setor, especificamente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Na opinião dessa liderança, a FPA atua hoje sem embasamento técnico. “Como a gente ganha tudo [na arena do Congresso], não precisa de embasamento técnico.

Rastreando a desinformação

Por dois meses, a Pública, com o apoio do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , analisou anúncios na Meta (Facebook e Instagram), vídeos no YouTube e outros conteúdos publicados em redes sociais e em sites noticiosos ou não, com o objetivo de rastrear quem está por trás da disseminação do negacionismo climático e da desinformação ambiental no país.

As fontes primárias da desinformação são basicamente um trio formado pelas duas figuras citadas por Nobre – Ricardo Felício, professor de geografia da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Carlos Molion, meteorologista e professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) – e pelo agrônomo Evaristo de Miranda, recém-aposentado da Embrapa, que se tornou guru ambiental do agronegócio e de Jair Bolsonaro.

O palco deles, além das associações do agronegócio que os convidam para palestras, são os canais digitais ligados ao setor e à extrema direita. Miranda e Felício, por exemplo, são colunistas fixos e fontes frequentes de reportagens da Revista Oeste, publicação lançada em março de 2020 que se define como “a primeira plataforma de conteúdo cem por cento comprometida com a defesa do capitalismo e do livre mercado”.

Produtora de documentários e programas conservadores, a Brasil Paralelo se tornou um dos principais veículos de desinformação do país, na opinião de especialistas que investigam o assunto. No campo socioambiental, um dos vídeos considerados mais danosos é o “Cortina de Fumaça”, de 2021, que nega o desmatamento da Amazônia, fala que há “muito alarde” sobre queimadas e que “não existe uma floresta sendo destruída, mas uma floresta sendo preservada”.

“Infodemia socioambiental”

Somente no período entre 31 de março e 27 de junho deste ano, a reportagem contabilizou 31 aparições dos três cientistas negacionistas na mídia – em colunas semanais e entrevistas – e em eventos presenciais. Mas a disseminação desse conteúdo vai muito além deles e foi incorporada por deputados e senadores da FPA, além de influenciadores ligados ao agro e à extrema direita.

É um comportamento que foi apelidado pela equipe do NetLab, liderada pela pesquisadora Marie Santini, de “infodemia socioambiental”, em que a desinformação ambiental se tornou “uma das pautas centrais na propaganda política da extrema direita brasileira, servindo de argumento para o desmonte da proteção do meio ambiente e o avanço sistemático de atividades extrativistas no Brasil”. Essa explicação está em um relatório lançado pelo grupo no começo do ano, após análise do debate socioambiental entre janeiro de 2021 e novembro de 2022, os dois últimos anos da gestão Bolsonaro.

Em geral, os pesquisadores captaram políticos e influenciadores endossando teorias negacionistas e defendendo ações do governo nas questões ambientais. No período eleitoral, disputas sobre os números do desmatamento da Amazônia e propaganda positiva sobre a atuação do agronegócio brasileiro foram predominantes.

“Ou seja, para desqualificar uma pauta baseada no conhecimento científico, esses anúncios tentam arrastar a disputa da opinião pública para fora do campo da ciência, como se o que estivesse em jogo não fossem evidências, mas sim narrativas”, complementam.

A cientista Ludmila Rattis, ligada ao Woodwell Climate Research Center, dos Estados Unidos, e ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e o pesquisador Phillipe Käfer, responsável pelo programa do Brasil do laboratório de inovações financeiras do Climate Policy Initiative, vê como o negacionismo atrapalha a adoção de sistemas mais sustentáveis de produção rural. “Sabemos, que a agropecuária não somente afeta o clima em razão de suas emissões, como também é afetada pelas alterações nos regimes naturais de chuvas e temperatura”

. Por outro lado, conta, tem crescido o interesse sobre agricultura regenerativa, com insumos biológicos, rotação de culturas e outras práticas que trazem mais fertilidade para o solo e ajudam o produtor a lidar com as questões climáticas.

Ou seja, para adaptar a agricultura brasileira às mudanças climáticas e evitar perdas graves para os produtores, parece que a chave é não falar sobre mudanças climáticas.

Fonte: Agência Pública.

Foto: Pixabay.