As cavernas, cavidades naturais subterrâneas, são consideradas bens da União, de acordo a Constituição Federal (artigo 225). Formadas pelo resultado de processos de intemperismo químico e físico de centenas de milhares de anos, elas constituem um ambiente único.
A gênese das cavernas calcárias está relacionada à dissolução química do carbonato de cálcio pelas águas das chuvas, que são pouco ácidas, mas ao passarem pelos solos, ganham mais acidez. Esse processo possibilitou a abertura de condutos e seu posterior alargamento, originando salões, galerias e rios subterrâneos, acessíveis ou não ao ser humano.
O clima nas cavernas, na maioria das vezes, é estável, com pouca variação de temperatura e alta umidade relativa do ar. Próximo às entradas, a influência do meio externo é maior, ao contrário dos trechos mais profundos, onde ocorre total ausência de luz, impedindo a fotossíntese e limitando o fluxo de energia e a vida.
As ornamentações das cavernas são conhecidas como espeleotemas, que variam de tamanho, forma e coloração, dependendo do padrão de cristalização e de sua composição química. Dentre os espeleotemas mais comuns, estão as estalactites e as estalagmites, forma-se por gotejamentos no teto e chão das cavernas, respectivamente. As colunas nascem da junção dessas duas formações e as cortinas pela cristalização em tetos inclinados.
Também as represas de travertino, diques de tamanhos variados, com a deposição de mineral nas bordas, estando ou não cheias de água saturada de sais, podem formar novos espeleotemas.
As cavidades naturais subterrâneas constituem testemunhos de processos de evolução geológica, dos relevos e da vida em uma determinada região, com ocorrência de depósitos de fósseis de vertebrados, como a preguiça-gigante e o tigre dente-de-sabre, dentre outros. Por essas e outras características, elas constituem um vasto campo de pesquisas científicas, com grande importância ecológica, turística, educativa e econômica.
As principais ameaças diagnosticadas nas cavernas são atividades minerárias; empreendimentos lineares e de geração de energia; atividades agropecuárias; ocupação urbana; visitação desordenada e coleta ilegal de material paleontológico, mineral e arqueológico; lacunas de conhecimento e desinformação sobre o patrimônio espeleológico e ambientes associados; e as falhas nos instrumentos normativos e na aplicação das normas e na gestão pública.
Contudo, sem alarde e com uma canetada, o governo Bolsonaro flexibilizou e reduziu a proteção de todas as cavernas do país, incluindo as de máxima relevância, que são as de maior valor ecológico. A mudança foi publicada na edição extra do Diário Oficial da União do dia 12/01/1922 e pegou os especialistas de surpresa.
Assinada pelo próprio presidente, Jair Bolsonaro, pela secretária-executiva do Ministério de Minas e Energia, Marisete Fátima Dadald Pereira, e pelo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, a medida permite que empreendimentos possam impactar, de forma irreversível, qualquer caverna, independente do seu grau de relevância, mediante autorização do órgão ambiental. De acordo com especialistas em cavernas ouvidos por ((o))eco, o novo decreto é inconstitucional e põe em risco o patrimônio espeleológico brasileiro.
“Esse decreto coloca por fim a proteção de cavernas no Brasil”, resume Enrico Bernard, professor especialista em morcegos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O decreto presidencial nº 10.935/2022 muda as regras do jogo e remove as restrições. A partir da nova legislação, ficam permitidos impactos negativos irreversíveis em cavernas de máxima relevância, caso o empreendimento seja considerado de “utilidade pública”, não haja alternativa locacional e não provoque a extinção de espécie que ocorre na cavidade. Além disso, o decreto altera e reduz os próprios critérios que determinam o que é uma cavidade de máxima relevância.
Perde-se também o cinturão de proteção das cavidades de máxima relevância e fica determinado que poderão existir empreendimentos e atividades nas áreas de influência de uma cavidade subterrânea, “independentemente do seu grau de relevância”.
“Do ponto de vista físico, cavernas são únicas. Não existem duas cavernas iguais, porque os processos que dão origem a uma caverna são únicos. Não existe compensação correta por causa da singularidade delas”, reforça Enrico Bernard, presidente da SBEQ. Ele destaca ainda o alto grau de endemismo nas cavernas, ou seja, a presença de espécies que ocorrem apenas em uma única caverna.
Existem centenas de cavernas consideradas de máxima importância dentro de áreas de mineração, por exemplo, que até então não podiam ser exploradas pelas mineradoras, pois eram protegidas pelas leis anteriores. Com o novo decreto, essas cavidades agora estão vulneráveis à exploração minerária e poderão sofrer impactos negativos irreversíveis – e, inclusive, serem suprimidas –, mediante autorização do órgão ambiental licenciador competente e adoção de medidas compensatórias.
Para ganhar o aval do órgão ambiental, o empreendedor precisa demonstrar, por exemplo, que os impactos decorrem de atividade ou de empreendimento de utilidade pública. “Se baixarem uma norma que mineração é atividade de utilidade pública, isso abre a porteira para que os órgãos ambientais estaduais passem a considerar toda a atividade de mineração de utilidade pública e possam autorizar os impactos nas cavernas de máxima relevância. A boiada está em curso”, alerta o presidente da SBEQ.
De acordo com o atual decreto, a nova metodologia para classificação do grau de relevância das cavernas será definida através de um ato conjunto dos ministros do Meio Ambiente, de Minas e Energia e de Infraestrutura, ouvidos o ICMBio e o Ibama. Antes, essa incumbência era exclusiva do Ministério do Meio Ambiente, com apoio do ICMBio e Ibama.
Em nota, a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) manifestou-se contrária ao novo decreto e destacou que não foi ouvida sobre a mudança. “A SBE reforça que não foi convidada para contribuir ou para integrar grupos de discussão acerca desta modificação substancial da legislação espeleológica brasileira. O Decreto Federal nº 10.935/2022 foi produzido a portas fechadas, sem diálogo com a comunidade espeleológica e, claramente, mostra a interferência direta dos Ministérios de Estado de Minas e Energia e de Infraestrutura em uma matéria que é de interesse ambiental. Esta interferência visa à facilitação de licenciamento de obras e atividades potencialmente lesivas ao patrimônio espeleológico nacional e que, geralmente, estão associadas a atividades de alto impacto social”, descreve a nota.
Na avaliação das fontes ouvidas por ((o))eco, o novo decreto desrespeita a Política Nacional da Biodiversidade e os tratados da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), da qual o Brasil é signatário.
Mas ainda no dia 13/012022 o senador Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou um projeto de decreto legislativo para anular a norma publicada, a qual retirou a proteção de todas as cavernas do país.
Fonte: Econotícias, Um Só Planeta, Fundação Florestal SP, Nexojornal, ICMBio, O Tempo.