O crescimento do consumo de ultraprocessados por todo o mundo representa um desafio urgente para a saúde pública, cujo enfrentamento exige políticas coordenadas e ações contundentes, aponta uma coletânea de três artigos publicada na revista científica The Lancet, elaborada por 43 cientistas de vários países, liderados por pesquisadores do Brasil, Austrália e Chile. Os artigos revisaram evidências que indicam que os alimentos ultraprocessados estão substituindo alimentos in natura e minimamente processados nas refeições, piorando a qualidade da dieta e que ainda estão associados a um aumento do risco de diversas doenças crônicas.
O trabalho destaca que, embora as pesquisas prossigam, as evidências atuais são suficientes para uma reação coordenada de políticas de saúde, que já deveria estar sendo implementada. Expõe, ainda, as táticas das empresas de alimentos para induzir o consumo e impedir políticas contrárias, gerando um sistema alimentar impulsionado pelo lucro corporativo e não pela nutrição ou sustentabilidade.
“Estratégias políticas são implementadas para bloquear a regulamentação governamental e suprimir a oposição, garantindo a continuidade do crescimento [do mercado de ultraprocessados]”, afirmam os autores. Isso é feito por uma rede global de grupos de interesse corporativos, envolvendo lobby, doações políticas e disputas judiciais.
Os artigos apresentam também uma agenda com propostas de regulação governamental, mobilização comunitária e ampliação do acesso a dietas saudáveis, acessíveis e economicamente viáveis. A meta é reduzir a produção, a publicidade e o consumo de ultraprocessados, ao mesmo tempo em que se combate o alto teor de gordura, açúcar e sal e se aumenta o acesso a alimentos saudáveis.
Danos à saúde
O primeiro artigo da série revisa as evidências científicas sobre os ultraprocessados e a saúde desde que o termo foi criado por Carlos Monteiro e a equipe do Nupens, em 2009. Eles são produtos industrializados, feitos a partir de ingredientes baratos, como gorduras hidrogenadas, isolados proteicos ou xarope de glicose e frutose, e de aditivos cosméticos, como corantes, adoçantes artificiais e emulsificantes. Eles são projetados e comercializados para substituir alimentos in natura e minimamente processados e refeições tradicionais, com o objetivo de maximizar os lucros corporativos.
A publicação apresenta evidências de que os ultraprocessados estão substituindo padrões alimentares tradicionais, piorando a qualidade da dieta e associando-se a um risco aumentado de múltiplas doenças crônicas relacionadas à alimentação. Estudos nacionais indicam que o consumo está em ascensão em diversos países. A participação energética (calorias consumidas) nas compras domiciliares ou no consumo alimentar diário triplicou na Espanha (de 11% para 32%) e na China (de 4% para 10%) nas últimas três décadas, e aumentou de 10% para 23% no México e no Brasil nas últimas quatro décadas. Nos Estados Unidos e Reino Unido, o consumo manteve-se acima de 50% nas últimas duas décadas, com um leve crescimento. As evidências mostram que dietas ricas nesses alimentos estão associadas à ingestão excessiva de calorias, pior qualidade nutricional, excesso de açúcar e gorduras não saudáveis e baixo teor de fibras e proteínas, e maior exposição a aditivos e substâncias químicas nocivas.
Além disso, uma revisão sistemática conduzida especialmente para o trabalho, que analisou 104 estudos de longo prazo, identificou que 92 relataram risco aumentado de uma ou mais doenças crônicas, com associações significativas para 12 condições de saúde, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, depressão e morte precoce por todas as causas.
Acesso a alimentos saudáveis
O segundo artigo da série apresenta um conjunto de políticas coordenadas para regular e reduzir a produção, a publicidade e o consumo de alimentos ultraprocessados, responsabilizando as grandes empresas pelo papel que desempenham na promoção de dietas não saudáveis O texto destaca que melhorar as dietas em escala global exige políticas específicas, a fim de complementar as legislações já existentes voltadas à redução do teor de gorduras, sal e açúcar nos alimentos. “Propomos incluir ingredientes que caracterizam os ultraprocessados, como corantes, aromatizantes e adoçantes, nos rótulos frontais das embalagens, junto aos marcadores de excesso de gordura saturada, açúcar e sal.
Os autores também propõem restrições mais rigorosas à publicidade, especialmente a anúncios direcionados a crianças, à mídia digital e à publicidade por marca, além de proibir esse tipo de alimentos em instituições públicas, como escolas e hospitais, e limitar sua exposição e espaço nas prateleiras de supermercados.
Um exemplo bem-sucedido é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) do Brasil, que eliminou a maior parte dos ultraprocessados e exigirá que até 2026, 90% dos alimentos oferecidos sejam frescos ou minimamente processados
Os autores enfatizam que, paralelamente à regulação, é essencial ampliar o acesso a alimentos frescos e in natura. Uma estratégia possível é taxar determinados ultraprocessados para financiar subsídios a alimentos frescos destinados a famílias de baixa renda.
Já o Chile integrou rótulos de advertência na frente da embalagem de alimentos não saudáveis com restrições à sua comercialização — incluindo a proibição de publicidade na televisão das 6h às 22h — e de sua venda ou promoção em escolas. “Essas políticas, juntamente com outras mudanças importantes, devem ser fortalecidas, coordenadas de forma mutuamente reforçadora e estendidas a mais países”, dizem os autores.
Resposta global articulada
O terceiro artigo da série explica que são as grandes corporações globais, e não escolhas individuais, as principais responsáveis pelo aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, e defende que uma resposta global de saúde pública a esse desafio é urgente e viável. Os autores destacam que as empresas que fabricam e comercializam esses alimentos usam ingredientes baratos e métodos industriais para reduzir custos, combinados com marketing agressivo e designs atraentes para impulsionar o consumo. Com vendas anuais globais de US$ 1,9 trilhão, os ultraprocessados representam o setor mais lucrativo da indústria alimentícia. Só os fabricantes respondem por mais da metade dos US$ 2,9 trilhões distribuídos a acionistas por todas as empresas de alimentos de capital aberto desde 1962.
O trabalho revela que essas empresas empregam táticas políticas sofisticadas para proteger seus lucros, bloqueando regulações, influenciando debates científicos e moldando a opinião pública. Elas coordenam centenas de grupos de interesse em todo o mundo, fazem lobby com políticos, realizam doações eleitorais e usam a via judicial para atrasar políticas públicas. “Essas empresas costumam se apresentar como parte da solução, mas suas ações contam outra história, centrada em proteger lucros e resistir à regulação efetiva”, afirma Simon Barquera, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Pública do México.
Segundo os pesquisadores, enfrentar os alimentos ultraprocessados requer uma nova visão para os sistemas alimentares, capaz de valorizar produtores locais diversos, preservar tradições alimentares culturais, promover equidade de gênero e garantir que os benefícios econômicos da produção de alimentos retornem às comunidades, e não apenas aos acionistas. “Assim como enfrentamos a indústria do tabaco há décadas, precisamos agora de uma resposta global ousada e coordenada para conter o poder desproporcional das corporações de ultraprocessados e construir sistemas alimentares que priorizem a saúde e o bem-estar das pessoas”, defende Karen Hoffman, professora da Universidade de Witwatersrand (África do Sul).
Entre as estratégias para mobilizar uma resposta global de saúde pública, os autores sugerem o estabelecimento de uma rede global de ação contra alimentos ultraprocessados para coordenar ações e o financiamento de coalizões nacionais para se engajarem em negociação política, comunicação, aspectos legais e pesquisa. “As recentes conquistas em defesa de direitos e políticas públicas, especialmente na América Latina e na África Subsaariana, oferecem lições importantes para ampliar a ação em outros lugares”, concluem.
Fonte: Jornal da USP.
Imagem Reprodução do artigo em The Lancet.


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