Contaminação por mercúrio causa graves deficiências cognitivas em crianças yanomamis

Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indica que a contaminação por mercúrio afeta quase toda a população de nove aldeias yanomamis situadas em Roraima. Os resultados, divulgados nesta quinta-feira (4), foram obtidos a partir da análise de amostras de cabelos colhidas em outubro de 2022. De acordo com os pesquisadores, o estudo mostra uma situação preocupante e contribui para aprofundar o conhecimento sobre os impactos do garimpo ilegal de ouro na região.

O estudo, intitulado Impacto do mercúrio em áreas protegidas e povos da floresta na Amazônia: uma abordagem integrada saúde-ambiente, teve o apoio da organização não governamental Instituto Socioambiental (ISA) e mobilizou duas instâncias da Fiocruz: a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. As aldeias envolvidas no estudo situam-se na região do Alto Rio Mucajaí e reúnem yanomamis do subgrupo ninam.

São 9,6 milhões de hectares entre os estados de Amazonas e Roraima em uma região rica em minérios. Nela, vivem cerca de 26 mil indígenas ianomâmis que têm sido altamente impactados pela presença de garimpeiros ilegais. inédita que revela a contaminação por mercúrio em mulheres e crianças.

A presença do garimpo ilegal nesse território é um problema de décadas. O mercúrio é usado no processo de separação do ouro dos demais sedimentos. Sendo uma atividade clandestina, que busca driblar a fiscalização, geralmente não são adotados cuidados ambientais. O mercúrio acaba sendo despejado nos rios e entra na cadeia alimentar dos peixes e de outros animais. Além da contaminação, o avanço do garimpo ilegal tem sido relacionado com outros problemas de saúde enfrentados pelas populações yanomamis, tais como a desnutrição e o aumento de diferentes doenças, sobretudo a malária.

De acordo com o estudo que analisou amostras de cabelo de quase 300 indivíduos, 56% dos indígenas apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 2 microgramas por grama (ou ppm). Em 4% da população analisada havia concentrações acima de 6 microgramas por grama, considerado o limite para o surgimento de efeitos adversos à saúde. A partir dessa concentração de mercúrio no cabelo, aumentam as chances de surgirem danos neurológicos graves.

Levantamento utilizou testes de QI e detectou que desnutrição infantil e outros problemas sanitários e sociais também podem estar afetando a saúde dos indígenas

Os efeitos de intoxicação por mercúrio entre os ianomâmis identificou graves deficiências cognitivas entre crianças da etnia, por testes de quociente de inteligência (QI) feitos pela primeira vez em indígenas. Os resultados apontam fortes indícios dos efeitos da contaminação por mercúrio, mas a desnutrição infantil e outros problemas sanitários e sociais podem estar relacionados ao problema.

A média de valor de QI entre as 58 crianças participantes foi 68 (o índice vai até 120). O melhor resultado do grupo foi de um menino que atingiu um nível considerado mediano.

Em condições mínimas adequadas, é esperada o QI em torno de 100. As crianças estão com déficit de inteligência ou inteligência limítrofe. É um dano permanente, com consequências para toda a vida. Quando adultas, elas podem ter dificuldades de acesso à formação escolar, e chances reduzidas no mercado de trabalho — alerta o coordenador do grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da Fiocruz, Paulo Basta.

“O que nos observamos nos resultados é que, quanto maiores são os níveis de contaminação, maior é a frequência de danos provocados. E estamos falando aqui de danos permanentes e irreversíveis, que vão afetar o desenvolvimento cognitivo e a capacidade intelectual das crianças”, diz Basta.

“Esses efeitos vão ser levados para a vida adulta, vão afetar a qualidade de toda a vida dessas crianças”, continua o pesquisador.

Pesquisas já haviam indicado que o metilmercúrio pode provocar alterações sensoriais, motoras e cognitivas irreversíveis, resultando em diversos prejuízos. A exposição ao metal pesado é particularmente grave em gestantes, já que ultrapassa a barreira placentária e atinge o feto em formação no útero.

Além do risco de causar abortamento ou anomalias e deformidades congênitas nas crianças, o mercúrio pode provocar retardo nos marcadores de neurodesenvolvimento dos bebês.

Ainda que a pesquisa tenha encontrado fortes indícios dos efeitos da contaminação nos déficits cognitivos, os pesquisadores destacam que a desnutrição infantil e outros problemas sanitários e sociais também podem estar relacionados aos problemas.

O estudo identificou ainda outras violações aos direitos dar crianças yanomamis desde a gestação, como falta de acompanhamento pré-natal, vacinação e estímulos educacionais, além de insegurança alimentar. Por exemplo, só 15,5% das crianças tinham a vacinação completa, e 27,3% apresentavam anemia.

De 2018 a 2022, o desmatamento promovido pelo garimpo na terra ianomâmi, onde vivem quase 30 mil indígenas, aumentou 309%, segundo a Hutukara Associação Yanomami. Além de contaminar os rios, derrubar árvores e afugentar animais — o que compromete as principais fontes de alimentação dos indígenas — os garimpeiros, em muitos casos financiados por organizações criminosas, aliciam jovens, fomentam conflitos internos, sequestram pistas de voos dos polos de saúde e disseminam doenças. Além disso, cresceram as denúncias de violências sexuais.

“O que essas comunidades vivem é um combo de destruição causada pelo garimpo. É o garimpo que provoca a devastação de onde vivem e gera escassez de alimentos, de caça, de áreas agricultáveis, contamina os rios. É isso o que gera insegurança alimentar, que leva à fome e desnutrição”, diz o pesquisador.

Ele cita ainda as alterações ambientais provocadas pelo garimpo que levam ao aumento de doenças transmissíveis como a malária.

No ano passado, o governo federal mobilizou uma paraça-tarefa para retirar os garimpeiros, mas o número de mortes ainda não diminuiu: em 2023, houve 363 mortes. No ano anterior, foram 343. A Secretaria de Saúde Indígena suspeita de que houve subnotificação de mortes em 2022 e outros anos anteriores.

— As nossas crianças estão nascendo doentes — denuncia o vice-presidente da Hutukara, Dário Vitório Kopenawa.

Fontes: Fiocruz, Folha SP, O Globo.

Foto: – Lalo de Almeida 12.mai.2023/Folhapress.