Lembra o calorão que você vivenciou em agosto e, especialmente, em setembro deste ano? A crise climática gerada pela ação humana aumentou em até cem vezes a chance de um calor extremo como esse ocorrer em diversas partes do Brasil nos últimos dois meses, mostra novo estudo divulgado nesta terça-feira (10).
Sem o aquecimento global causado por humanos — associado, essencialmente, à queima de combustíveis fósseis, mas também a ações como o desmatamento —, o calorão no final do inverno e no começo da primavera no Brasil seria de 1,4°C a até 4,3°C menor.
A análise foi feita pela WWA (World Weather Attribution), grupo de cientistas especializados na chamada ciência da atribuição, que estuda eventos climáticos. Os estudos de atribuição, com base em modelos climáticos, comparam a chance de um evento no mundo atual, ou seja, na presença da crise climática, e em um mundo sem o aumento da temperatura provocado pela ação humana.
Os dados produzidos pela WWA não têm, inicialmente, revisão por pares. Porém, os modelos usados pela instituição para fazer a atribuição já foram avaliados e publicados em revistas científicas.
Em um mundo sem a crise climática (cerca de 1,2°C mais fresco), seria baixa a probabilidade de um calor extremo tal qual visto. O estudo concluiu também que um episódio como esse na região é um evento que ocorre uma vez a cada 30 anos no clima mundial atual.
Os cientistas concentraram o estudo nos dez dias consecutivos mais quentes do período e em um quadrante que se estende do litoral de São Paulo até o Paraguai, passando também por partes do Sul e do Centro-Oeste.
Os autores apontam que a região é relativamente homogênea em termos climáticos e teve as maiores anomalias positivas (ou seja, anomalias com temperaturas superiores às esperadas) durante o mês de setembro. A área analisada inclui estados em que houve alertas para o nível de calor (com exceção do Pará).
Os pesquisadores apontam que as temperaturas elevadíssimas duraram mais de 50 dias consecutivos, com o evento de calor extremo começando em 17 de setembro, em parte do centro-sul do país, espalhando-se nos dias seguintes para o Norte e o Nordeste.
O pico do evento de calor, dizem os autores, ocorreu no dia 25 de setembro, com anomalias de temperatura de mais de 7°C para esse período do ano — em algumas regiões, os termômetros passaram dos 40°C.
Segundo os pesquisadores, o fenômeno El Niño pode ter influenciado os padrões, mas, em comparação com a crise climática, a contribuição direta dele foi pequena para o calorão observado em partes do Brasil e também em países vizinhos da América do Sul, como o Paraguai.
“Nós queremos ser claros: o fenômeno El Niño poderia ter contribuído com algum calor, mas, sem a mudança do clima, a intensidade da onda de calor da primavera não seria tão intensa”, afirma Lincoln Alves, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e um dos autores do trabalho, em comunicado à imprensa.
Como mostrou reportagem recente da Folha, o inverno de 2023 foi especialmente quente, com a temperatura média mais alta já registrada em 10 das 25 capitais brasileiras em que é possível calcular o clima a partir de estações do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia).
Os modelos climáticos já apontam que extremos de calor como o observado se tornarão mais frequentes e mais intensos graças ao aquecimento global provocado pelas atividades humanos. Quando falamos em aumento de temperatura, estamos nos referindo a um crescimento da média global em relação ao período pré-industrial (a média de 1850 a 1900).
Atualmente, a temperatura média global já subiu mais de 1,1°C, com grande participação nesse processo das emissões de gases-estufa por humanos.
No momento, a humanidade caminha a passos firmes para ultrapassar os 1,5°C de aumento de temperatura. Essa é a elevação colocada como limite “preferível” no Acordo de Paris, do qual o Brasil é signatário, para evitar danos ainda mais profundos no planeta e na vida humana cotidiana.
Os autores do novo estudo estimam que, com um aumento de temperatura de 2°C, um calor como o vivenciado recentemente no Brasil se tornará outras cinco vezes mais provável e ainda de 1,1°C a 1,6°C mais quente do que o visto em agosto e setembro deste ano.
Ondas de calor extremo são um risco à saúde, podendo levar até mesmo à morte, especialmente em faixas da população mais vulneráveis, como idosos e crianças pequenas. É difícil, porém, no momento em que ocorre a onda de calor já contabilizar as vítimas, o que usualmente é feito em estudos posteriores.
“Calor extremo é um dos eventos naturais mais letais. Milhares de pessoas morrem anualmente por eventos relacionados ao calor”, disse, em entrevista coletiva na manhã desta terça-feira, Julie Arrighi, diretora do Red Cross Red Crescent Climate Centre.
A análise do WWA, que contou com pesquisadores de dentro e fora do Brasil, aponta ainda as dificuldades de fazer estudos de mudança climática em diversas regiões do país pela falta ou insuficiência de dados observacionais de longo prazo. A maior parte das bases de dados foi criada só nas décadas de 1970 e 1980.
Fonte: Folha SP.
Foto: Jardiel Carvalho – 24.set.2023/Folhapress.