O aquecimento global vai favorecer a disseminação de doenças transmitidas por mosquitos, e a maioria dos estudos projeta situações preocupante a partir da próxima década. Médicos que lidam com o problema no Brasil, porém, afirmam que esse futuro indesejável já chegou em 2023.
O médico e cientista potiguar Kleber Luz, atuante na resposta ao surto de microcefalia associada à zica em 2015, foi escalado no último Congresso Basileiro de Infectologia em Salvador (BA), na semana passada, para resumir o cenário regional das arboviroses (nome dado às viroses transmitidas por insetos e outros artrópodes). Chegou ao encontro alertando os presentes para uma alta de casos de dengue no fim do inverno, em setembro, quando a doença não costuma se espalhar tanto.
— Nós estamos vivendo talvez a maior epidemia de arboviroses que já tenha acontecido nas Américas — disse Luz. — De uma forma muito clara, o comportamento das arboviroses tem sido modificado pela presença do vetor (mosquito). E a presença do vetor tem sido modificada pelo aquecimento global.
A manifestação mais evidente do problema é o recorde de casos e mortes por dengue, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. Com cerca de 1,5 milhões de casos por ano agora, a doença matou mais de 2.000 pessoas em dois anos no Brasil. Países vizinhos também têm registrado problemas.
— O Uruguai, o norte da Argentina e o Chile já estão registrando casos autóctones de dengue e chikungunya, e no Brasil já faz três anos que a região Sul é vice campeã de casos — diz Luz, que mostra preocupação com a expansão do sorotipo 3 do vírus da dengue. — O sorotipo 3, que é presente no norte das Américas, desceu pela América Central, já está no Norte do Brasil, e pode gerar problema.
A dengue por si já coloca o continente em alerta, mas um comportamento incomum da chikungunya também está preocupando. Essa outra doença, caracterizada por dores nas articulações, é muito incapacitante, mas não costuma matar suas vítimas. O perfil de baixa letalidade, porém, está mudando.
Num surto que ocorre no Paraguai, a mortalidade é alta, com mais de 300 óbitos. Como médicos ainda não entenderam o motivo da alta letalidade ali, não está descartado que uma versão mais agressiva da doença surja em outros países.
A zica parece problema menor, por enquanto, porque após o grande surto de 2016 não ocorreu mais epidemia de microcefalia em bebês. O patógeno permanece em nível residual na população, porém, e epidemiologistas não sabem com clareza o que pode levar a um novo surto da malformação neurológica.
Diversidade viral
Se três vírus não são o bastante, outros dois patógenos de nomes menos conhecidos têm aparecido com mais frequência em diagnósticos e estudos de monitoramento: o oropouche e o mayaro. O primeiro, da família da dengue, já tem presença estabelecida na região Norte.
— Até agosto, foram 64 casos identificados em Roraima, 38 no Acre e 36 em Rondônia, mostrando que, se a gente procurar, a gente acha — diz André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia (INI), da Fiocruz.
Ele destaca que em Roraima o oropouche já se mostrou mais prevalente que a dengue em certas ocasiões. Como o quadro clínico da infecção é similar nas duas doenças, é possível que a estatística de dengue tenha embutido casos do oropouche. O mesmo ocorre com o mayaro, que pode ser confundido com chikungunya.
— É fundamental buscar o diagnóstico utilizando-se das técnicas de biologia molecular — afirma Antônio Bandeira, infectologista do Laboratório Central (Lacen) do estado da Bahia, lembrando que a vigilância epidemiológica para arboviroses ainda é muito ancorada em diagnósticos clínicos.
Para a vigilância epidemiológica, porém, ampliar os diagnósticos moleculares é um desafio, porque é preciso de estrutura para transportar e armazenar amostras de sangue. Com a Covid-19, por exemplo, bastam amostras de secreção nasal, e foi mais fácil universalizar os testes moleculares.
Novos vírus que emergem ocasionalmente também são um desafio.
Bandeira descreveu no congresso doenças invasivas do sistema nervoso ligadas a arbovírus. Essa evolução grave ocorre em parcela pequena dos indivíduos infectados, mas quando um vírus se espalha muito numa população, ela passa a ter relevância.
Em 2020, cientistas de São Paulo relataram um óbito pelo vírus de Ilhéus, patógeno menos conhecido, após analisarem amostras de fluido de pacientes com suspeita de dengue grave. Esse vírus também tem circulado e, a despeito de não existir vigilância, Bandeira encontrou outro caso em fevereiro, numa mulher internada em Simões Filho (BA).
Novos mosquitos
Não é só a diversidade de vírus que preocupa cientistas, mas também a de insetos. O vírus de Ilhéus parece estar adaptado a oito gêneros diferentes de mosquitos, incluindo o Culex, grupo do pernilongo comum.
Um primo do Aedes aegypti, o Aedes albopictus, também tem gerado preocupação. Historicamente mais adaptado a áreas de floresta, esse outro mosquito conseguiu colonizar zonas urbanas, e pesquisadores já o reconhecem como vetor até mais assustador: diferentemente do aegypti, o Aedes albopictus voa em enxames.
Segundo Luz, estratégias mais modernas para exterminar o mosquito, como bactérias Wolbachia, foram exitosas. Mas um surto com mais espécies de mosquitos paraçará cientistas a migrar para outra frente, as vacinas de arboviroses, que por enquanto existem só para dengue e febre amarela.
— Só existem dois jeitos de controlar doença infecciosa. Se o patógeno é transmitido por água, você fornece água limpa às pessoas. Se a forma de transmissão é outra, o único jeito é a vacina — diz o médico.
Fonte: O Globo.
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