Depressão, insônia, surdez: o drama dos agricultores que vivem embaixo de parque eólico na cidade de Lula

Em 2014, dois parques de geração de energia, que totalizam 220 torres na zona rural do município de Caetés no agreste de Pernambuco, foram instalados nas comunidades rurais de Sobradinho e Pau Ferro.

Eles se transformaram em um teste de resistência para um grupo de 120 famílias de pequenos agricultores que vivem bem perto delas — em alguns casos, a cerca de 150 metros — por conta do barulho alto e ininterrupto produzido pelos aerogeradores em uma área acostumada ao silêncio da roça e ao som dos animais da caatinga.

“Vocês que vêm de fora e estão filmando elas, é bonito. Mas venham morar debaixo delas para você ver o barulho por 24 horas, dia e noite. É esse zupo, zupo, zupo….

A BBC News Brasil visitou a região para entender melhor o que está acontecendo ali.

Os moradores relatam que as torres, com 120 metros de altura e hélices de 50, fomentam ansiedade, insônia e depressão, o que fez com que muitos ali começassem a tomar ansiolíticos.

Hoje, existem 890 desses parques no Brasil, responsáveis por 13% de toda energia elétrica gerada. Até o fim do ano, a expectativa do setor é chegar a mil usinas.

O receio de ativistas e pesquisadores é que o modelo implantado em Caetés se espalhe para outras cidades que hoje são alvo do interesse das empresas.

Nos últimos meses, esse movimento de resistência às eólicas deu resultado em pelo menos um local: moradores de Borborema, na Paraíba, desistiram de ceder suas terras para a instalação de parques na cidade.

A BBC News Brasil procurou os ministérios de Minas e Energia e Meio Ambiente para tratar do assunto, mas não obteve resposta.

‘O barulho fica no meu ouvido’

Acácio Noronha mora em uma casa com três cômodos a 150 metros de quatro torres instaladas na fazenda de vizinhos, em Sobradinho.

“Você não dorme, não tem aquele prazer de deitar e descansar. Quando cochila, acorda assustado, achando que ela vai cair. Tem hora que parece um apito, cachorro latindo, um avião que nunca decola”, conta Acácio.

Acácio é um dos moradores que começaram a tomar remédios para insônia e ansiedade. “Se estou nervoso, o barulho só piora”, diz.

‘Não estão conseguindo mais ouvir’

Os relatos sobre problemas de saúde chamou a atenção de médicos e cientistas do agreste. É o caso de Wanessa Gomes, professora de Saúde Coletiva da Universidade de Pernambuco (UPE), que tem um campus em Garanhuns.

Nos últimos meses, ela e seus orientandos da pós-graduação iniciaram uma pesquisa, além de uma residência médica, para tentar medir o impacto das torres na saúde da comunidade.

O estudo, que vai durar três anos, é financiado pela UPE e pela Fiocruz.

“Há relatos fortes de que as pessoas não estão mais conseguindo ouvir como antes.

“Em Caetés, as casas estão a 150 metros de uma torre eólica. É muito pouco.”

Alguns  estudos apontam para a relação entre ruídos, insônia e perda auditiva, mas há pesquisas que divergem desse diagnóstico.

Na Holanda, por exemplo, alguns pesquisadores afirmaram que os ruídos não causam problemas de saúde mental, mas, logo depois, outro grupo de cientistas contestou essa conclusão, afirmando que há muitos indícios de prejuízos à saúde, além de apontar que a pesquisa inicial havia sido bancada por empresas de energia eólica.

A questão da distância ideal entre os aerogeradores e as casas também vem sendo discutida em vários países em um momento em que a transição energética foi apontada como uma das soluções para frear a emissão de gases de efeito estufa.

A Polônia, por exemplo, estabeleceu um mínimo de 400 metros, e a França, de 700.

No ano passado, após uma série de protestos, o Conselho de Estado da Holanda, mais alto conselho administrativo do país, suspendeu a construção de um parque eólico e solicitou mais estudos sobre possíveis consequências ambientais e na saúde mental das pessoas que vivem a cerca de 600 metros de onde as torres seriam instaladas.

No Brasil, a executiva Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), reconhece os problemas de Caetés. Ela classifica os parques da cidade como “antigos, construídos antes da regulação que prevê um distanciamento de 400 metros entre torres e residências.”

Terra dividida

A zona rural de Caetés é dividida em pequenas propriedades na caatinga.

Por volta de 2012, as empresas procuraram agricultores que aceitassem arrendar suas terras para a instalação dos aerogeradores. Esse modelo é o mais comum no ramo.

Quem aceitou passou a receber 1,5% do valor da energia gerada em cada torre, cerca de R$ 2 mil mensais.

Essas pessoas, que melhoraram consideravelmente de renda com isso, saíram de suas terras e foram viver na zona urbana.

A reportagem tentou conversar com algumas delas, mas o termo assinado com as empresas exige “confidencialidade” sobre o assunto.

A BBC News Brasil teve acesso a dois contratos oferecidos a agricultores por duas empresas diferentes em cidades do Nordeste.

Além de autorizar a transferência do terreno para outra empresa sem a necessidade do aval do proprietário, um dos documentos afirma que o contrato tem duração de 49 anos e informa que só pode ser rescindido pelo agricultor em “comum acordo” com a companhia.

Por outro lado, as empresas têm o direito de quebrar o contrato a qualquer momento, sem custos, se o imóvel tiver algum problema que atrapalhe a produção.

Outro documento afirma que, caso o proprietário descumpra obrigações que tenham paraça para rescindir o contrato, como o pagamento de taxas e impostos, a empresa pode cobrar uma multa de 30 vezes o valor recebido por ano pela energia gerada.

Ou seja, essa multa pode chegar a milhões de reais e ser superior ao valor do próprio imóvel.

O prefeito de Caetés, Nivaldo Martins (Republicanos), afirma que, no geral, a chegada das eólicas levou mais benefícios do que problemas à cidade.

“Tem famílias que têm seis torres… Vamos dizer que ela receba R$ 2 mil por cada uma. São R$ 12 mil por mês”, diz. “Os parques tiveram um impacto importante na renda da cidade. As pessoas pegaram esse dinheiro e fizeram construções aqui, ou compraram casas prontas e vieram viver na zona urbana.”

‘Vai cair em cima de nós’

Enquanto os agricultores que cederam seus sítios melhoraram de renda, quem ficou embaixo das torres vive essencialmente do Bolsa Família e da produção agrícola. Já o medo das torres afeta essas famílias até na hora de plantar.

“Funcionários da manutenção nos disseram que há cabos elétricos no solo e que há risco de descargas elétricas. Então, a gente não planta mais como antes”, diz Roselma Oliveira, de 35 anos, que se tornou a principal liderança dos agricultores de Sobradinho.

No ano passado, a família de Roselma passou por um susto.

“A gente estava em casa às 6h da manhã. De repente, uma explosão. Meu marido disse ‘corre, tira as crianças que a torre tá caindo no telhado, vai cair em cima de nós”, conta ela, que gravou um vídeo do momento em que hélice se soltou e caiu a poucos metros de sua casa.

Ninguém ficou ferido, mas a família diz que ficou traumatizada.

A alguns quilômetros dali, em sua casa em Pau Ferro, o antropólogo Alexandre Gomes Vieira, de 30 anos, também registra acidentes, mas, no caso dele, envolvendo pássaros nativos da caatinga que se chocam contra as torres.

Há alguns anos, Alexandre, que herdou de seu bisavô um pequeno sítio, resolveu pesquisar os impactos ambientais e sociais das eólicas em seu mestrado e doutorado na UFPE.

“Constatamos que muitas aves, como gaviões, águias e codornas são atraídas pelas hélices e acabam colidindo com as torres, diminuindo a incidência de espécies que já são raras. Os agricultores relatam que não ouvem mais o canto de alguns pássaros, como o acauã e a mãe da Lua, que têm uma simbologia religiosa”, explica.

Segundo o antropólogo, que faz parte de um grupo de pesquisadores que estuda os impactos da energia eólica, parte da vegetação da caatinga foi suprimida para a construção de estradas para a passagens de veículos durante a instalação e, agora, para manutenção dos parques.

Fonte: BBC News.

Foto: Vitor Serrano/BBC.