Deserto do Atacama se transforma em lixão

Montanhas de roupas usadas, carros e pneus de todo o mundo poluem o vasto deserto do Atacama, no norte do Chile, um ecossistema de equilíbrio frágil que se tornou o lixão do planeta.

Entre paisagens cheias de beleza, aglomerados de detritos surgem em vários pontos do deserto, um território com mais de 100.000 quilômetros quadrados.

A imagem vai ficando cada vez mais nítida. Sapatos, camisetas, casacos, vestidos, gorros, trajes de banho e até luvas para neve formam essa surpreendente montanha.

São peças inexplicavelmente abandonadas em pleno deserto. É roupa descartada pelos Estados Unidos, pela Europa e Ásia, enviada ao Chile para ser revendida.

Calcula-se que 300 hectares do deserto do Atacama estejam cobertos por lixo

Das 59 mil toneladas importadas todos os anos, grande parte (algo como 40 mil toneladas) não é vendida – acaba no lixo.

A maioria fica nas cercanias de Alto Hospicio, uma comunidade com altos níveis de pobreza e vulnerabilidade.

Como funciona o mercado de roupa usada?

O negócio é imenso e completamente legal. De acordo com o Observatório de Complexidade Econômica (OEC), uma plataforma que registra diversas atividades econômicas pelo mundo, o Chile é o maior importador de roupa usada na América do Sul, recebendo 90% desse tipo de mercadoria na região.

Aqui estão instaladas ao menos 50 importadoras que diariamente recebem dezenas de toneladas de peças de segunda mão que depois são distribuídas por todo o Chile para revenda.

Os proprietários das importadoras têm nacionalidades distintas: alguns são de países longínquos como o Paquistão.

Após várias tentativas, a fundadora da PakChile, Paola Laiseca, explica à BBC Mundo como funciona o negócio.

“Nós trazemos roupa dos Estados Unidos, mas também chega da Europa”, diz ela, sentada no escritório de um imenso galpão onde se acumulam vários fardos de peças de segunda mão.

A maioria dessas roupas foi doada a organizações de caridade em países desenvolvidos. Muitas vão para locais de distribuição ou são entregues a pessoas necessitadas.

Mas o que não é aproveitado (por defeito na peça, por exemplo) segue para países como Chile, Índia ou Gana.

Laiseca explica que ao porto de Iquique chegam peças de qualidades distintas.

“A roupa usada vem em sacos e nós aqui fazemos uma seleção dividida em primeira, segunda e terceira categoria.”

“A primeira é das melhores peças, sem defeitos, sem manchas, impecáveis. A segunda pode ter peças sujas ou descosturadas. Na terceira há produtos mais deteriorados”, explica, que de acordo autoridades locais grande parte acaba em lixões clandestinos.  .

“Sabe-se que ao menos 60% [do que se importa] é resíduo ou descartável e é isso que forma os montes de lixo”, afirma Edgard Ortega, responsável pela área de meio ambiente na municipalidade de Alto Hospicio.

No Chile é proibido descartar têxteis até em depósitos legais porque causa instabilidade do solo. Assim, não há, em teoria local, para jogar fora o que não se comercializa.

Laiseca reconhece que existem pessoas que recebem dinheiro para descartar a roupa que não é vendida.

De acordo com Patricio Ferreira, prefeito de Alto Hospicio, os importadores da zona franca “contratam carreteiros ou um caminhão coletor e pagam para que deixem em qualquer lugar”.

Contaminação

A indústria da moda está entre as mais poluentes do mundo, depois da indústria do petróleo.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), ela é responsável por 8% dos gases do efeito estufa e por 20% do desperdício de água no mundo.

Para produzir uma peça de jeans são gastos algo como 7.500 litros de água.

Além disso, grande parte da roupa está cheia de poliéster, um tipo de resina plástica derivada do petróleo e que oferece grandes vantagens em relação ao algodão: mais barato, pesa pouco, seca rápido e não amassa.

O problema é que demora 200 anos para se desintegrar – o algodão leva 2 anos e meio.

E aqui, no deserto do Atacama, a maioria das peças estão cheias justamente de poliéster. Camisetas esportivas, trajes de banho ou shorts brilham como novos, mas provavelmente estão há meses ou anos nas pilhas de lixo.

Com o passar do tempo, as roupas se desgastam e liberam microplásticos que acabam na atmosfera, afetando fortemente a fauna marítima ou terrestre das cercanias.

Outra coisa que preocupam as autoridades são os incêndios que anualmente ocorrem nos lixões clandestinos.

“Como não há um dispositivo legal, a única solução é queimar [a roupa]. E a poluição da fumaça é um grande problema”, explica Eduardo Ortega. “São provocados incêndios anuais de grandes proporções, que duram entre dois e dez dias.”

Soluções?

O problema da roupa no deserto do Atacama não é novo.

Faz cerca de 15 anos que os descartes têxteis se acumulam nesse lugar icônico, mas agora o problema tem atingido proporções gigantescas, afetando 300 hectares (algo como 420 campos de futebol) da região, segundo a secretaria de meio ambiente de Tarapacá.

A solução, no entanto, não é simples.

No momento, há dois planos em andamento: um programa de erradicação de lixões clandestinos e a incorporação da roupa usada à Lei de Responsabilidade Estendida do Produtor, que estabelece obrigações para empresas importadoras.

Mas ainda faltam passos importantes para que os planos sejam colocados em prática: no caso do primeiro, é necessária a aprovação do governador regional e, no caso do segundo, ainda é preciso elaborar o decreto de regulamentação.

A falta de fiscalização e controle na área faz com que seja muito fácil descartar as peças em depósitos ilegais.

Bonecas velhas e jogos infantis escondidos entre as montanhas do deserto evidenciam a passagem do tempo e, de alguma forma, o abandono de uma área distante dos países desenvolvidos – de onde sai muito da roupa descartada aqui.

“E lamentavelmente transformamos nossa cidade no lixão do mundo”, conclui.

Fonte: BBC.

Foto: Nicolás Vargas.