Uma área equivalente a 278 mil campos de futebol, maior que a capital de São Paulo e que 96% das cidades do Sudeste. Esse é o tamanho da superfície desmatada numa faixa de 10 km no entorno imediato da Terra Indígena Karipuna, entre os municípios de Porto Velho, Nova Mamoré e Buritis, em Rondônia.
O desaparecimento de três quartos da floresta em volta contrasta com a natureza quase intocada dentro da demarcação. A pressão, no entanto, já ultrapassa as cercas. Na última década, invasões para grilagem e extração ilegal de madeira multiplicaram a devastação interna de 6 km² para 71 km² (cerca de 5% da vegetação nativa).
O caso Karipuna é um entre muitos exemplos da ameaça crescente ao redor dos territórios indígenas na Amazônia, mostra análise de instituições de pesquisa.
A derrubada corresponde a metade ou mais da floresta original nos arredores de 36 unidades alcançadas pela fronteira agrícola, chegando a 92% nas bordas da Terra Indígena Sororó, em São Geraldo do Araguaia (PA). Os cálculos consideram uma distância de 10 km para fora dos limites de cada território.
Baseada nos dados oficiais do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), atualizados até o ano passado, a análise mostra o solo indígena como a categoria fundiária mais preservada da Amazônia.
As 327 áreas ocupadas por povos originários representam um quarto do bioma e só perderam 1,5% da vegetação primária. Enquanto isso, a supressão já é de 24% no restante da região.
Com a expansão das atividades agropecuárias e ocupações urbanas em direção à floresta, muitas reservas se tornaram verdadeiras ilhas verdes cercadas por pastagens e lavouras. Garimpo, exploração madeireira e grilagem são outros vetores de pressão.
Especialistas alertam que a aceleração do desmatamento estimulada pela insegurança jurídica e pela fragilização das garantias de proteção do Estado pode reverter o cenário de preservação dentro das áreas indígenas, com graves consequências no contexto da crise climática.
“Temos um passivo de demarcação no Brasil. Hoje, quem faz a defesa territorial são muitas vezes os próprios povos, colocando suas vidas em risco e em muitos casos morrendo por causa dessa disputa”, diz Martha Fellows, coordenadora do núcleo de estudos indígenas do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
A ameaça escalou nos últimos tempos, notadamente entre 2019 e 2022, sob o governo Jair Bolsonaro (PL), quando procedimentos de delimitação e regularização foram paralisados. A devastação ao redor dos territórios (6.216 km²) aumentou 66% na comparação com os quatro anos anteriores.
Em termos proporcionais, a destruição mais expressiva se deu em volta da reserva Karipuna, com 14% do desmate sendo registrado no intervalo recente.
O aumento da pressão externa refletiu em taxas alarmantes no interior dos territórios, ainda que em menor escala. A área desmatada nos anos da gestão Bolsonaro (1.604 km²) corresponde ao triplo do período anterior e a 10% de toda a supressão contabilizada dentro das reservas.
“É algo diretamente relacionado à leitura política, ao respaldo que o governo dava para esse tipo de atividade. Quando o presidente fala que não vai demarcar nenhum centímetro, isso é um recado para as pessoas invadirem”, afirma a pesquisadora.
Os dados sugerem que maiores níveis de proteção legal podem inibir ataques. No geral, as taxas de desflorestamento são mais altas nos territórios em estágios menos avançados do processo regulatório, que vai da fase de estudo à homologação e regularização pelo governo.
Um exemplo é a Terra Indígena Ituna-Itatá, localizada entre Senador José Porfírio (PA) e Altamira (PA).
Ainda na etapa de avaliação, a unidade está protegida por uma portaria de restrição do uso, resolução que deveria ser suficiente para proibir a entrada de pessoas estranhas aos quadros da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
Ainda assim, o território virou alvo de invasões e crimes ambientais, em especial o garimpo. A porção da floresta destruída dentro da reserva disparou de 2% para 17% apenas entre 2018 e o ano passado.
Outro caso emblemático é o das terras vizinhas Sororó e Tuwa Apekuokawera. Regularizada em 1983, a primeira mantém um baixo desmatamento (5%) em meio ao entorno mais pressionado da região. Já a segunda, delimitada e aguardando demarcação desde 2012, vive situação oposta, com 96% da área interna devastada.
Estudo recente do Ipam concluiu que uma escalada do desmate em territórios indígenas ameaçaria o equilíbrio climático do Brasil. As unidades na Amazônia Legal formam um estoque de 55 bilhões de toneladas de carbono, o equivalente a 26 anos de emissões brutas do país em gases de efeito estufa.
Os pesquisadores também calcularam o “efeito ar-condicionado” da floresta. Em média, áreas indígenas apresentam temperatura 2°C mais baixa que as não protegidas, com a diferença chegando a 5°C no entorno do Parque do Xingu (MT). Já a evapotranspiração — processo de devolução da umidade para a atmosfera, base para a formação de nuvens — é 9% maior que nas zonas externas.
“Além de outros efeitos, a queda na preservação pioraria as condições para o próprio agronegócio, pois grande parte da produção de commodities não é irrigada, depende da chuva”, destaca Martha Fellows.
Funai e organizações ligadas a direitos indígenas não têm uma estimativa consolidada sobre as reservas impactadas pelo marco temporal. Segundo levantamento da Folha de São Paulo baseado nos estágios do processo regulatório, a posse sobre ao menos 24% das terras na Amazônia Legal está ameaçada.
Guardiões da Floresta
A análise da Folha usou dados do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), mantido pelo Inpe.
O sistema contabiliza a supressão da vegetação nativa e registra somente áreas desflorestadas com extensão superior a 6,25 hectares (nove campos de futebol). A série histórica vai até 2022.
O cálculo das proporções desmatadas é baseado na superfície total das áreas analisadas. Para se avaliar a devastação no entorno das terras indígenas, foi projetada uma faixa com 10 km de largura para fora das bordas de cada território.
Foram utilizados o recorte do bioma amazônico estabelecido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e os limites das terras indígenas disponibilizados pela Funai.
Fonte: Folha SP.
Foto: Michael Dantas – 22.set. 2023/AFP.