No ano passado, 47% dos embargos feitos pelo ICMBio por infrações na Amazônia não identificaram culpado. Falta de regulação fundiária e de fiscais ainda é um entrave para o governo
Em junho de 2020, fiscais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) fizeram uma operação de combate ao desmatamento em unidades de conservação no interior do Pará. Guiados por imagens de satélite que apontavam clarões onde deveria haver floresta, foram a campo com viaturas, caminhões e um helicóptero.
Tudo meticulosamente planejado com apoio do Exército. As condições climáticas, no entanto, foram um fator surpresa no dia da operação. Pancadas de chuva amazônica deixaram as estradas intransitáveis. Um dos caminhões atolou no lamaçal. Resultado: os servidores não conseguiram chegar a uma das áreas onde havia sido constatado desmatamento ilegal. Como não houve flagrante, o relatório da operação, elaborado dias depois, informou que o responsável por desmatar aquele trecho da Amazônia era “desconhecido”.
A palavra aparece com frequência em documentos do ICMBio, autarquia responsável por gerir e proteger as áreas de conservação federais. Dados oficiais organizados pelo projeto Data Fixers mostram que, desde 2009 (primeiro ano com estatísticas disponíveis), quase 1,4 mil áreas foram embargadas por infrações ambientais sem que o culpado fosse identificado pelo governo. No ano passado, 29% dos embargos em unidades de conservação foram registrados sem nome. Quando se considera apenas as unidades localizadas na Amazônia, a proporção sobe para 47%.
O embargo é uma política considerada eficaz por ambientalistas, e teve papel importante na redução do desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012. Ele permite que o governo, informado por imagens de satélite e fiscalização em campo, crie rapidamente entraves para quem derruba a floresta. A pessoa que desmatou a terra fica impedida de captar créditos bancários para produzir naquela área, por exemplo. Além disso, é obrigada a interromper suas atividades (criação de gado, plantação de soja, o que para), pagar multa pela infração e regenerar a mata.
Não há punição ao infrator, no entanto, se o governo não consegue identificá-lo. Esse é hoje um dos principais gargalos do combate ao desmatamento no Brasil. A tecnologia que permite a detecção de crimes ambientais evoluiu na última década, mas ainda esbarra em dois problemas básicos: a falta de regulação fundiária na Amazônia (que dificulta encontrar os donos das terras, frequentemente registradas em nome de laranjas) e a baixa presença de agentes públicos (para fiscalizar e garantir o embargo na prática).
No Pará, estado que tem o dobro do território da França e concentra algumas das maiores unidades de conservação do Brasil, há apenas 114 agentes do ICMBio (ainda assim, é o segundo estado com maior presença deles, atrás somente do Distrito Federal). “Caracterizar a autoria das infrações ambientais em 100% dos casos é um grande desafio”, afirmou o instituto, em resposta à Revista Piauí por meio da Lei de Acesso à Informação. “As equipes de fiscalização podem se deslocar até o local da área desmatada, muitas vezes áreas remotas, e não encontrar ninguém no local, ou ocorrer evasão imediata dos suspeitos, não encontrar moradores, vizinhos etc. E assim, não é possível atribuir autoria à infração constatada.”
Mesmo quando as autoridades encontram alguém na terra desmatada, não há garantia de punição aos responsáveis. “A pessoa pode ser só um funcionário, que sequer terá uma informação verdadeira sobre o dono”, explica o analista ambiental Apoena Figueiroa, que faz parte da coordenação de fiscalização do ICMBio.
Até 2021, o ICMBio registrava o valor das multas mesmo quando o culpado era desconhecido. Por isso, é possível ter uma estimativa de quanto dinheiro o Estado já deixou de arrecadar: desde 2009, multas cadastradas sem o nome do infrator somaram ao menos 290,9 milhões de reais em valores corrigidos. Isso equivale a mais de um terço do orçamento anual do ICMBio (873 milhões de reais, em 2024).
Graças à evolução das tecnologias de satélite, os embargos remotos se tornaram mais comuns, tanto no Ibama quanto no ICMBio. Isso fez com que o número total de embargos crescesse, já que ficou mais fácil detectar irregularidades. O governo Lula aposta nessa frente. No primeiro trimestre de 2023, o número de embargos feitos pelo Ibama foi quase o dobro da média dos anos Bolsonaro.
Já era esperado, portanto, que houvesse um aumento na proporção de áreas embargadas em que não houve identificação do proprietário. O governo em algumas ocasiões recorre ao chamado “embargo genérico”, quando várias porções de terra são embargadas de uma vez só. Em outubro de 2022, por exemplo, mais de mil áreas foram embargadas por meio de um único relatório. Elas ficavam localizadas na Floresta Nacional do Jamanxim e somavam uma área total de 35 mil hectares.
O objetivo do governo é dar uma camada de proteção à maior extensão territorial possível. O embargo, com ou sem identificação do culpado, produz um registro oficial indicando que determinada área está envolvida em irregularidades. Esse registro pode dificultar, por exemplo, a comercialização de gado criado ilegalmente em áreas de proteção ambiental. Cria-se um obstáculo. A punição, no entanto – fundamental para descapitalizar grileiros, dificultar que sejam cometidos novos crimes ambientais e ressarcir o Estado –, ainda não ocorre como deveria.
Um dos problemas apontados por agentes do ICMBio é o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Criado em 2012 com o intuito de monitorar se donos de terras no Brasil inteiro estavam obedecendo às regras de preservação ambiental, o cadastro acabou se tornando uma ferramenta útil para grileiros. Isso porque é um sistema que funciona com base na autodeclaração: uma pessoa, se quiser, pode se dizer dona de toda a reserva ambiental do Xingu. Registrada formalmente no CAR, essa propriedade, embora flagrantemente ilegal, passa a ter um verniz de legalidade; um documento.
Não tardou para que o sistema fosse inundado de fraudes de todo tipo. Fazendas não apenas são registradas dentro de unidades de conservação como são atribuídas a proprietários de fachada, o que dificulta as investigações. “Um sistema que foi criado para favorecer a recuperação de áreas degradadas acaba servindo hoje para o contrário”, lamenta Figueiroa.
“O embargo remoto de fato representou uma mudança de paradigma no combate ao desmatamento ilegal no Brasil. Estamos falando de desmatamento em unidades de conservação, em sua grande maioria extensas áreas de terras públicas com equipe de campo reduzida”, diz Dhemerson Conciani, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “Mas é urgente fortalecer a gestão dessas áreas, além de garantir uma maior integração com os órgãos de comando e controle.”
O CAR, hoje, é de responsabilidade dos governos estaduais. Figueiroa acredita que, se o ICMBio fosse incluído no processo de validação desses cadastros, o número de fraudes seria menor – ou, ao menos, seria mais fácil encontrar os fraudadores.
Há outros caminhos possíveis. O procurador do Ministério Público Federal Daniel Azeredo coordena o projeto Amazônia Protege. É um programa que, para identificar responsáveis pelo desmatamento, cruza várias bases de dados públicas. Aplicando esse método, o projeto já obteve mais de 130 decisões favoráveis na Justiça em casos em que o réu era inicialmente desconhecido. A intenção do programa é também fazer com que empresas não comprem alimentos produzidos em áreas desmatadas.
Fonte: Revista Piauí.
Imagem: REUTERS/Amanda Perobelli.