A humanidade desperdiçou, por dia, o equivalente a um bilhão de refeições em 2022, representando uma perda de US$1 trilhão, segundo um estudo divulgado em março deste ano pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Isso corresponde a cerca de um quinto da produção global de alimentos — e também terra, água, energia, trabalho e outros recursos indo para o lixo. Enquanto isso há 800 milhões de pessoas passando fome no mundo.
De acordo com o relatório, feito em parceria com a organização sem fins lucrativos WRAP, o desperdício de alimentos no globo é responsável por cinco vezes mais emissões de CO2 do que o setor da aviação. Além disso, a produção, a comercialização e o consumo de alimentos – e o seu desperdício – geram resíduos que acabam descartados em aterros sanitários, emitindo gás metano, outro grande vilão da mudança climática.
Se fosse um país, a comida desperdiçada ficaria em terceiro lugar no que se refere ao volume de emissões de gases de efeito estufa, atrás apenas de China e Estados Unidos. “O desperdício de alimentos responde por 10% das emissões globais das atividades humanas. Quando avaliadas apenas as emissões do sistema alimentar, do campo até o descarte, o desperdício contribui com 50%”, acrescenta Gustavo Porpino, analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Segundo ele, não há escapatória: reduzir a pegada de carbono da produção e consumo de alimentos requer necessariamente a implementação de ações para mitigar o desperdício de alimentos.
Descarte no Brasil
No Brasil, cada cidadão descarta em média 60 kg de alimentos em condições de consumo por ano, de acordo com estudo divulgado pela ONU em 2023. Apesar da grande extensão de terras e alta produção de grãos, carnes e outros produtos alimentícios, o país ocupa o top 10 em desperdício de alimentos. Enquanto isso, 21 milhões de brasileiros não comem todos os dias e 70 milhões estão em situação de insegurança alimentar.
“O desperdício de alimentos ocorre em toda a cadeia de cultivo, transporte, produção, armazenamento e consumo”, detalha a engenheira sanitarista Fernanda Spinassi, presidente da Associação Food Safety Brazil. “O uso apropriado dos recursos é um dos principais fatores para o combate à mudança climática. Desta forma, trabalhar na redução do desperdício está diretamente relacionada à parte desta transformação.”
Em vez do enfoque em aumento de produção de alimentos, é preciso transferir mais tecnologias aos pequenos produtores, ampliar a resiliência das cidades à mudança climática, incluindo mais áreas produtivas urbanas e cinturões verdes, e implementar modelos de negócio baseados na lógica da economia circular dos alimentos. “Reduzir o desperdício de comida é útil para ampliarmos as oportunidades de enfrentarmos a fome, gerar impactos ambientais positivos e também é uma oportunidade para o empreendedorismo de impacto social”, ressalta Porpino.
Iniciativas pelo país visam combater os gargalos nos mais diversos estágios do desperdício: da produção à distribuição, passando pelo armazenamento. São projetos que envolvem os setores público e privado, além da sociedade civil. A seguir, confira cinco soluções brasileiras para o problema.
SuperOpa
Em seu trabalho de conclusão de curso na Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2015, o administrador Luis Borba identificou que nenhuma iniciativa brasileira atuava no desperdício de alimentos na cadeia de distribuição. Ao perceber essa oportunidade de mercado, ele criou a SuperOpa. A foodtech oferece um aplicativo que funciona como um marketplace da indústria de alimentos, conectando as distribuidoras diretamente ao consumidor final.
No app, são vendidos, por preços mais baixos, alimentos próximos do vencimento e inadequados para as prateleiras dos supermercados, como itens com avarias nas caixas. Os valores são definidos através da tecnologia de Inteligência Artificial (IA) desenvolvida pela empresa, chamada go.i.a.ba, especialista em precificar itens com validade curta.
“Com isso, além de evitar o desperdício desses itens, conseguimos levar produtos de qualidade principalmente a quem não tem condição de comprar em seu preço normal”, explica Borba, CEO da startup.
Outra solução da SuperOpa é o FoodPass. Voltada ao mercado de benefícios empresariais, ela oferece cestas básicas personalizadas, onde o trabalhador escolhe os alimentos, incluindo itens antes descartados por ineficiências na cadeia de suprimentos, com 70% de desconto. Já o projeto “Pra Valer”, em parceria com a Nestlé, leva produtos da marca com risco de serem descartados pela proximidade da validade, para comunidades carentes.
As iniciativas já salvaram mais de 2 milhões de quilos de alimentos, o que resulta em quase 3 toneladas de CO2 poupadas ao meio ambiente. Para o futuro, a meta é ajudar 1 milhão de trabalhadores das classes C e D a ter uma alimentação saudável e completa, superando a insegurança alimentar.
Mesa Brasil
Administrado pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), a rede Mesa Brasil foi criada há três décadas e é o maior banco privado de alimentos do Brasil. O projeto resgata a comida que seria desperdiçada, levando esses alimentos para complementar as refeições de pessoas em situação de vulnerabilidade em instituições sociais. Em 30 anos, foram quase 750 mil toneladas de alimentos distribuídos. Uma média de 1,5 milhão de pessoas são atendidas por ano.
São 95 unidades em funcionamento nos 26 estados do país, além do Distrito Federal (DF), com uma capilaridade de atendimento a mais 500 municípios. Apenas no ano passado, 45 mil toneladas de alimentos foram distribuídos a 2 milhões de pessoas. Entre os mais de 3 mil doadores estão Danone, Nestlé, Atacadão, Carrefour e Unilever.
Outro pilar do programa é a educação. São realizadas oficinas sobre como prolongar a vida útil dos alimentos doados e diversificar as refeições. Quase 3 milhões de pessoas já participaram de 88 mil ações educativas.
Syos
A proposta da startup Syos é reduzir o desperdício de alimentos no varejo através do monitoramento em tempo real de geladeiras e freezers dos pontos de venda. A iniciativa surgiu em 2019, no Rio de Janeiro, a partir da identificação de que a cadeia de frio ainda operava de forma manual.
“Apesar de ser uma indústria super-relevante, que transporta trilhões de dólares em produtos, ainda é muito analógica e isso acaba gerando muita perda, desperdício, ineficiência operacional e riscos legais”, resume o CEO Paulo Lerner.
A solução oferecida pela Syos usa Internet das Coisas (IoT) e IA para aumentar a precisão na gestão da temperatura. Primeiro, um sensor que monitora a temperatura por sete anos e envia os dados para a nuvem é colocado em refrigeradores e câmaras frias.
Na nuvem, os algoritmos de aprendizado de máquina entendem as variações de temperatura, de acordo com o tipo de produto, e alertam sempre que há risco para o produto ou a necessidade de manutenção.
São mais de 300 mil sensores fabricados no Brasil instalados no país. A cartela de clientes reúne mais de 400 empresas de diferentes segmentos, incluindo restaurantes, indústria alimentícia e farmacêutica, transportadoras e supermercados. Nos 15 mil pontos monitorados dentro do setor de alimentos, foram contabilizados 230 mil alertas por produtos em risco e 9,6 mil alertas em operações logísticas.
A previsão de faturamento para este ano é de R$ 20 milhões, com crescimento de mais de 100% ao ano. A expectativa de expansão, porém, esbarra na barreira cultural. “A maioria das empresas ainda continua trabalhando igual a 50 anos atrás. Muito alimento bom é desperdiçado e alimentos ruins são vendidos, chegando ao consumidor final exatamente pela falta de gestão efetiva de temperatura”, explica.
“O consumidor está muito preocupado com validade, marca, se é orgânico, vegetariano mas ainda não entendeu que a temperatura é o principal fator de qualidade de um produto”, afirma. “Aos poucos estamos conseguindo desbravar isso e mostrar que o uso de tecnologias é um caminho sem volta”, diz o CEO.
A startup pretende internacionalizar as operações futuramente, aproveitando que o Brasil é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. Outra oportunidade é a pressão do governo pela regulamentação do controle da temperatura. “Recentemente entrou em vigor uma nova legislação que obriga transportadoras de produtos farmacêuticos a monitorar a temperatura de forma digital. A tendência é que outras cadeias sejam obrigadas a digitalizar seus processos”, aposta.
Restin
Criada durante a pandemia, a Restin atua no combate ao desperdício, especialmente de proteínas, alimento cuja conservação é mais complexa que a dos demais. O desperdício da carne, aliás, é um dos que mais contribuem com a emissão de gases de efeito estufa. Segundo a ONU, cada quilo de carne desperdiçada equivale a 60 kg de CO2 emitido.
“Conectamos a indústria de alimentos que tem proteínas próximo do vencimento fazendo a venda para o food service, focando em restaurantes de pequeno a médio porte”, explica o CEO Luciano Almeida. A startup atua na cidade de São Paulo e na região metropolitana. Sua clientela inclui mais de 230 restaurantes e 11 indústrias, como a Swift.
A iniciativa foi responsável por salvar mais de 50 mil quilos de proteínas, além de reduzir a emissão de mais de 3 mil toneladas de CO2. Resultados como esses fizeram com que a empresa conquistasse o Selo ilmpact Br na categoria Desperdício de Alimentos, além de ficar entre as 100 Startups To Watch.
Mais Nutrição
Implantado em 2019 pela Secretaria da Proteção Social do governo do Ceará, o Mais Nutrição utiliza os alimentos excedentes das Ceasas (Centrais de Abastecimento), diariamente desperdiçados, para abastecer instituições sociais no estado.
O programa mantém dois bancos de alimentos com frutas e legumes que não seriam mais utilizados pelos comerciantes por falta de demanda ou condições estéticas, mas que seguem adequados ao consumo humano. Além disso, produz polpas de frutas e mix de legumes desidratados para serem transformados em sopa.
Durante seus cinco anos de existência, mais de três mil toneladas de alimentos foram doados, reduzindo a fome de 30 mil pessoas nos municípios de Caucaia, Fortaleza, Maracanaú, Maranguape, Barbalha, Crato, Juazeiro do Norte, Milagres, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri.
Os alimentos são fornecidos, prioritariamente, para crianças e adolescentes atendidos por entidades beneficentes. Por dia, são doados, em média, 2.500 quilos de alimentos em Maracanaú. Já no Cariri, a média diária de doação é de 600 quilos de alimentos. As instituições recebem as doações duas vezes por mês.
Fonte: Um Só Planeta.
Imagem: Getty Images.