Em 1975, estreou nos cinemas o filme Tubarão, em que um tubarão-branco aterroriza uma cidade litorânea nos Estados Unidos. Quase 50 anos depois do sucesso mundial da obra de Steven Spielberg, o medo de ataques resiste e dificulta o trabalho de conservação desses animais. Com o objetivo de medir o declínio da população de peixes cartilaginosos desde os anos 1970, um grupo de mais de 300 pesquisadores, brasileiros e de outras nacionalidades, avaliou as principais causas e riscos para a extinção de tubarões, raias e quimeras, estas últimas menos conhecidas por viverem em profundidade.
Em um artigo publicado na quinta-feira (5/12) na revista Science, especialistas do grupo Global Shark Trends Project revelaram que a sobrepesca reduziu pela metade as populações dos peixes cartilaginosos em 50 anos. Utilizando os critérios da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas publicada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), o trabalho mostra que o risco de extinção desse grupo de animais marinhos aumentou em 19%. A pesca excessiva das maiores espécies costeiras e pelágicas resultaria em uma redução de 22% na diversidade funcional dos oceanos.
O projeto levou oito anos para ser concluído, nos quais os pesquisadores avaliaram dados de distribuição, biologia, populações, comércio, ameaças e conservação de 1.199 espécies de tubarões, raias e quimeras. “Com frequência avaliamos o período das últimas três gerações das espécies; no caso dos peixes cartilaginosos, algumas têm um tempo de crescimento longo, demoram a se reproduzir e deixam poucos descendentes”, conta a bióloga Patrícia Charvet, da Universidade Federal do Ceará (UFC) e uma das brasileiras envolvidas no estudo. “São animais mais longevos do que os peixes ósseos, alguns vivem mais de 350 anos.”
No período de 70 anos analisado, o fator que mais se destaca como causador do desaparecimento dos tubarões e outros peixes cartilaginosos é a sobrepesca. “É consenso entre pesquisadores da área que essa é a maior ameaça”, comenta a bióloga maranhense Ana Barbosa Martins, pesquisadora da Universidade James Cook, na Austrália, que não participou do trabalho. Nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico que permitiu a expansão da pesca também resultou no aumento da pressão pesqueira em animais marinhos, de acordo com as especialistas. “Os tubarões, as raias e as quimeras têm características biológicas que os tornam particularmente suscetíveis à pressão pesqueira, com dificuldade de se recuperar frente a essa atividade”, afirma. O que ocorre com frequência, segundo ela, é que as populações não conseguem se recompor na mesma medida em que são impactadas pela pesca.
A captura global de tubarões e raias dobrou entre 1950 e 2000, de acordo com o levantamento divulgado no artigo. O aumento é preocupante, ainda que inferior ao da atividade pesqueira de forma geral, impulsionada pelo surgimento de sonares (localizadores), redes de arrasto mais eficientes e desenvolvimento das técnicas de pesca de espinhel pelágico e cerco. O aumento da atividade e sua sofisticação foram consequência do aumento na demanda por alimentos de origem marinha, dizem as pesquisadoras. Nos mercados, a carne de tubarão e raia é vendida fracionada em postas ou filés, com o nome de cação, como aponta um artigo publicado em 2021 por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) na Aquatic Conservation.
Na região onde hoje é o litoral catarinense povos nativos se alimentavam, há mil anos, de pelo menos 15 espécies de tubarões, das quais apenas quatro ainda são vistas na região com alguma frequência, de acordo com um estudo publicado em 2022 na revista Journal of Fish Biology. Entre as espécies apreciadas na dieta, estava Carcharodon carcharias, o tubarão-branco que inspirou o filme de Spielberg. Ele pode chegar a medir mais de 6 metros de comprimento e foi visto pela última vez em Santa Catarina há mais de 25 anos.
Em 2021, o Grupo de Especialistas em Tubarões para a América do Sul da UICN, do qual uma das coordenadoras é Charvet, revelou em um trabalho publicado na revista Current Biology que um terço das espécies de tubarões e raias estão ameaçadas de extinção. Anualmente, mais de 100 milhões de tubarões são capturados no mundo.
No Brasil, a pesca de algumas espécies ameaçadas é proibida por lei, mas o país continua sendo um dos maiores consumidores da carne dos peixes cartilaginosos – boa parte da importação vem do Uruguai, segundo um relatório de 2021 da organização não governamental World Wide Fund para Nature (WWF). “Existem espécies compartilhadas entre Brasil, Uruguai e Argentina. Mesmo o Brasil sendo signatário de iniciativas de proteção, nada adianta se os vizinhos estão pescando e exportando”, afirma Charvet. “Quem faz a manutenção da saúde dos ecossistemas são os predadores de topo e de posição intermediária, como os tubarões e raias, por isso, é essencial preservá-los.”
Além da pesca, as mudanças climáticas e a poluição dos oceanos também são apontadas pelos autores do artigo como fatores que impactam as populações de tubarões, raias e quimeras, mas em menor escala quando comparado à atividade de pesca. “Ainda estamos engatinhando para saber como as mudanças de temperatura vão afetar os peixes cartilaginosos; alguns podem até se beneficiar porque vivem melhor em temperaturas mais altas, mas isso não se aplica à maior parte das espécies”, explica Charvet.
Entre as soluções apontadas por especialistas para reverter a situação está uma regulamentação mais rígida da pesca para evitar capturas dirigidas ou incidentais de espécies de peixes cartilaginosos ameaçados de extinção, além de uma cooperação internacional para a implementação de medidas de conservação. “A pesca manejada tem que ser feita de forma sustentável, é preciso estabelecer limites e haver vontade política”, defende Charvet. Para a bióloga, os pescadores, desde aqueles que praticam pesca artesanal até os que manejam navios de pesca industrial, devem ser orientados com relação à regulamentação e também sobre o que fazer em caso de captura incidental de alguma espécie ameaçada.
Um dos exemplos positivos citados por Charvet é que existem países e regiões onde a pesca sustentável de tubarões e raias é possível. Austrália, Canadá, Estados Unidos e partes da Europa e da África do Sul seriam bright spots, focos de esperança por terem riqueza de espécies e, com manejo pesqueiro, oferecerem risco menor de extinção aos tubarões e a outros cartilaginosos. “Nessas regiões, existe um certo número de embarcações autorizadas a pescar algumas espécies, com limite de captura, além de todo um trabalho de sensibilização da população, dos trabalhadores e dos donos de embarcações”, conta a bióloga. São exemplos de como a pesca pode ser pensada, apoiada em conhecimento científico, de forma a permitir o recurso alimentar no longo prazo, preservando a biodiversidade oceânica.
Fonte: Um Só Planeta.
Foto: Illustration by Illustration Bb Tyler Sloan And Amy Sterling para Flywire, Princeton University, (Dorkenwald et al, Nature, 2024).
Seja o primeiro