Erguido no meio da floresta, ‘Stonehenge da Amazônia’ ainda guarda mistérios para a ciência

No topo de uma colina em Calçoene, a 374 km de Macapá (AP), um misterioso círculo de pedras chamou a atenção de moradores da região no início dos anos 2.000. Eles não sabiam que haviam descoberto um verdadeiro tesouro arqueológico, inédito no País e que agora será transformado em um parque de preservação pelo Amapá, após a aprovação do projeto pelo PAC do Patrimônio Histórico.

Cercado de misticismo, o monumento é formado por 127 rochas de granito, algumas de até 4 metros de altura, em um raio de 30 metros de diâmetro. Ali provavelmente os índios pré-coloniais da etnia Paliku realizavam cerimônias religiosas e fúnebres, tendo arquitetado o posicionamento das rochas de forma a alinhá-las com o começo do solstício de inverno, o ponto exato em que o Sol nasce.

O Amapá possui dezenas de sítios arqueológicos mapeados, em cada um dos 16 municípios. Um dos maiores é popularmente conhecido como “Stonehenge da Amazônia”. O conjunto de grandes rochas fincadas no solo ainda é um mistério no meio da floresta, o que gera curiosidade e ainda o surgimento de lendas.

Apesar de as pesquisas ainda tentarem encontrar informações que cercam o megálito, os indícios encontrados por pesquisadores são de que ele foi construído por indígenas há cerca de 1 mil anos antes de Cristo, para observação astronômica e também para rituais.

O Parque Arqueológico do Solstício fica em uma das margens do Igarapé Rego Grande, na área rural de Calçoene, a 374 quilômetros de Macapá. O acesso é feito pelo ramal que liga a sede do município à Vila do Cunani, percorrendo 30 quilômetros.

Grupos de pesquisa realizaram escavações em 2006, 2009 e em 2013, autorizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), segundo a gerência do Núcleo de Pesquisa Arqueológica (NuPArq) do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa), que administra a área.

A riqueza do lugar não está somente nas pedras, mas também debaixo delas, no solo. Arqueólogos já localizaram vasilhas cerâmicas, instrumentos confeccionados em pedra e urnas funerárias com restos mortais, que, para o Iphan, sugerem que o local foi um centro de rituais. O material faz parte do acervo do NuPArq/Iepa.

Quem assistiu à série Outlander certamente conhece a mística que envolve os círculos de pedras. Na série, as pedras de Craigh na Dun, nas Terras Altas da Escócia, são portais através dos quais algumas pessoas podem viajar pelo tempo. Craigh na Dun só existe na ficção, mas o Reino Unido abriga o círculo de pedras mais famoso do mundo, Stonehenge.

Embora os arqueólogos brasileiros rejeitem comparações com o monumento do Amapá, pelo menos uma característica eles têm em comum: as pedras são colocadas em posições para que seja possível observar o percurso do Sol no céu.

“Não temos nenhum caso parecido no Brasil. Pesquisas mostraram que existe um alinhamento com o Sol, então sabemos que quem construiu essas estruturas, esses cemitérios, conhecia também a posição dos astros, organizava cerimônias a partir de conhecimento astronômico. É muito interessante”, afirma o arqueólogo Eduardo Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo (USP).

O sítio integrava a área de uma fazenda, e foi adquirido pelo Estado nos anos 2000, a fim de realizar pesquisas e tornar a região uma atração turística. A comparação logo começou a ser feita com o famoso monumento megalítico na Inglaterra.

“Como pesquisadores, não gostamos muito de chamar de Stonehenge porque dá a impressão de que é uma imitação, sendo que é uma criação autêntica do povo da Amazônia”, já destacou João Saldanha, que foi arqueólogo do Iepa e acompanhou as primeiras pesquisas na região.

Apesar do objetivo inicial voltado para o turismo, atualmente o sítio não possui estrutura para visitas e o acesso é restrito devido aos vestígios arqueológicos que ainda estão no local.

Os índios

As características das urnas funerárias feitas em cerâmica indicaram que a região foi habitada pelo povo Arawak, que tem como descendentes os indígenas da etnia Palikur, que atualmente ocupam a fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa.

As urnas também demonstram que o local era usado para funerais de maneira diferente como ocorre atualmente. Os índios tratavam o ato como uma cerimônia festiva.

Itens usados para fazer cerveja artesanal estavam entre os vestígios que indicaram a tese, como vestígios de cerâmica, que provavelmente eram usados para cerveja de mandioca ou milho, além de pratos, que devem ter sido utilizados para servir alimentos, segundo Saldanha.

O solstício

Na astronomia, o solstício é o momento em que o Sol alcança sua maior declinação em latitude, medida a partir da linha do Equador, o que ocorre duas vezes por ano: em junho e dezembro.

Nesse dia em que o sol atinge o maior grau de afastamento angular do equador é possível ser visualizado através de sombras projetadas nas rochas do sítio em Calçoene. O solstício de inverno acontece entre 21 e 23 de dezembro, e o de verão entre 21 e 23 de junho.

Eduardo Neves diz que, normalmente, no Brasil e na Amazônia, não existem muitas estruturas construídas com pedras, no passado, pelos povos indígenas. “A maior parte das construções existentes foram feitas com terra, eram aterros, canais, estradas, lagos, terra escavada ou acumulada”.

A disposição das pedras e os buracos indicam o alinhamento astronômico dessas estruturas e a possibilidade do monitoramento meteorológico. Arqueólogos acreditam que o espaço era usado para acompanhar mudanças do período de estiagem para o chuvoso, duas únicas estações meteorológicas perceptíveis no Amapá em razão da linha do Equador.

Ainda é necessário entender como o “Stonehenge da Amazônia” foi construído, como as rochas foram levadas até o local, como foram organizadas num posicionamento preciso no solo, além de como funcionava o trabalho braçal dos povos indígenas milenares para a criação do lugar.

Em 2018, cientistas descobriram uso de técnicas agrícolas milenares no entorno do sítio. Foi o primeiro registro no país, segundo o Iepa. Os povos da região desenvolveram plantações elevadas que garantiam o plantio de grãos e raízes mesmo em áreas alagadas em função do longo período chuvoso na região.

Ineditismo

Eduardo Neves diz que, normalmente, no Brasil e na Amazônia, não existem muitas estruturas construídas com pedras, no passado, pelos povos indígenas. “A maior parte das construções existentes foram feitas com terra, eram aterros, canais, estradas, lagos, terra escavada ou acumulada”.

Um dos mistérios que ainda precisam ser investigados é como as pedras foram transportadas até o local e colocadas de pé. Abaixo delas foram construídas câmaras funerárias tampadas por blocos de pedra.

As técnicas para construção destes antigos monumentos são ainda desconhecidas. Uma das possibilidades é que os índios tenham aproveitado as falhas geológicas dos afloramentos de granito para destacá-las e depois levá-las até a colina.

Histórico

As primeiras observações arqueológicas da região onde o círculo foi construído foram feitas no fim do século 19, mas foi apenas em 2005 que os arqueólogos tomaram conhecimento do monumento, após relato de moradores.

A proposta de construção do Parque do Solstício foi apresentada pelo Núcleo de Pesquisa Arqueológica do Instituto de Pesquisa do Amapá (NuParq/Iepa) e aprovada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em março deste ano. O gerente do Núcleo, Lúcio Costa Leite, diz que no local onde será criado o Parque do Solstício de Calçoene atualmente funciona como uma Base de Pesquisa do Iepa, onde o NuParq realiza pesquisas desde 2005. “Esta iniciativa representa um passo importante na valorização e preservação da história na região”, comemora.

No laboratório, Leite diz que uma das prioridades é formação de mão de obra local para sustentar o esperado crescimento do turismo. Ele também acredita que o projeto deve impulsionar investimentos em estrutura hoteleira e de restaurantes, além de novos acessos ao local, que fica a 16 km da cidade.

Fontes: Estadão, g1.

Foto: Arquivo NuPArq/Iepa.