O preço do trigo bate recordes diariamente: na Chicago Board of Trade, o principal mercado internacional de produtos agrários, ele está 50% mais alto do que antes da ofensiva militar da Rússia contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro. Essa inflação se explica por ambas as partes do conflito estarem entre os maiores exportadores do cereal no mundo.
A maior parte da produção global de trigo é consumida no local de cultivo, o excedente vai parar nos mercados internacionais. Destes, a Ucrânia e a Rússia detêm “uma parcela gigantesca, de cerca de um terço”, explica o agroeconomista Matin Qaim, diretor do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento (ZEF, na sigla em alemão) em Bonn.
Os preços de alimentos e matérias-primas para rações podem subir entre 8% e 20% como resultado do conflito na Ucrânia, provocando um salto no número de pessoas desnutridas em todo o mundo, disse a FAO, a agência de alimentos e agricultura das Nações Unidas, nesta sexta-feira (11).
Em uma avaliação preliminar sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, a FAO disse que não estava claro se a Ucrânia seria capaz de realizar colheitas durante um conflito prolongado, e que há também incertezas em torno das exportações de alimentos russos.
A Rússia é, de longe, o maior exportador, enquanto a Ucrânia ocupa o quinto lugar, atrás dos Estados Unidos, Canadá e França, em ordem descendente. A maior parte do cereal dos dois países do Leste Europeu é exportada no verão e outono (junho a dezembro), “portanto os maiores problemas ainda estão por vir”, adverte Qaim.
A guerra na Ucrânia vai causar um choque “catastrófico” na cadeia de suprimentos e no custo dos alimentos, afirmou Svein Tore Holsether, chefe de uma das maiores empresas de fertilizantes do mundo, em entrevista à BBC.
“Metade da população mundial obtém seus alimentos graças ao uso de fertilizantes, e se isso para retirado de alguns cultivos, essa produção pode cair até 50%”, afirmou Holsether, da Yara International, empresa com sede na Noruega que opera em mais de 60 países e compra quantias consideráveis de matéria-prima da Rússia. “Para mim, não é uma questão se vamos ou não entrar numa crise global de alimentos, mas quão grande será essa crise.” Segundo ele, antes mesmo da guerra na Ucrânia, o preço de fertilizantes já estava alto por causa do aumento da cotação do gás natural. Segundo ele, “Agora o cenário tem mudado a toda hora”.
A guerra não dificulta apenas a exportação dos estoques disponíveis: caso se prolongue, pelo menos na Ucrânia não será possível semear e colher na medida usual. Isso, por sua vez, impulsionará ainda para mais alto os preços do trigo. Para os países consumidores, trata-se de um grande problema, já que muitos dependem de importações de gêneros alimentícios: “Nações como o Líbano ou o Egito importam a maior parcela de seus alimentos, muitas vezes entre 70% e 90%.”
“Nada a fazer, senão Comer ainda Menos”
Também no Quênia, 80% do trigo vem do exterior: “Nós importamos de diversos países, também da Rússia e da Ucrânia. O que está acontecendo lá vai derrubar as cadeias de abastecimento”, explicou à rádio alemã ARD o economista queniano Ken Gichinga. A Turquia é igualmente, em grande parte, dependente de trigo importado.
E o trigo não é o único produto agrário de que os países em guerra detêm uma grande parcela do mercado mundial: eles produzem 20% do milho e cevada, assim como até 80% do óleo de semente de girassol. “Estamos registrando aumentos de preço não só do trigo, mas também de outros alimentos”, reforça Qaim.
Para os pobres dos países em desenvolvimento, a alta dos gêneros representa, acima de tudo, fome: “Eles não têm nada a fazer, senão simplesmente comer ainda menos”, explica o diretor do ZEF.
Alguns países, como a Índia e a China, ainda possuem atualmente grandes reservas de trigo. “É claro que eles podem desbastar esses estoques, e assim ampliar a oferta de trigo”, comenta o agroeconomista. Mas isso não bastaria, nem de longe, para compensar a lacuna da participação russa e ucraniana.
Dilema das Sanções Ocidentais
No entanto, os russos seguem cultivando e colhendo trigo e outros produtos. “A questão é se teremos como possibilitar as exportações russas de gêneros alimentícios a fim de evitar uma catástrofe humanitária, ou seja: os danos colaterais da guerra em outras partes do mundo”, especula Qaim.
Isso, por sua vez, diz respeito às sanções ocidentais contra a Rússia, que não só dificultam as exportações como seu pagamento, já que diversos bancos russos foram excluídos do sistema internacional de transferências monetárias: “Aqui, precisamos discutir seriamente sobre exceções para alimentos”, insta Qaim.
Os desdobramentos futuros dependem, acima de tudo, do transcorrer da guerra. Um perigo real é que também na Ucrânia venha a grassar a fome em massa – num país que devido a seu chernossolo, de fértil terra negra, já foi chamado de “celeiro da Europa”.
Em meio ao agravamento da guerra, a Rússia recomendou aos produtores locais que suspendessem as exportações de fertilizantes e seus insumos. Ainda não se sabe qual será o impacto no Brasil — antes da deflagração do conflito, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, foi à Rússia para, entre outros objetivos, garantir o suprimento de fertilizantes.
Vale lembrar que o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo (atrás de China, Índia e Estados Unidos) e o maior importador mundial desses insumos. A soja é a principal cultura consumidora de fertilizantes no país. Somada com o milho, a cana-de-açúcar e o algodão, essas quatro culturas absorvem mais de 90% do fertilizante produzido ou importado pelo Brasil, diz a Embrapa.
Em linhas gerais, o Brasil importa 85% dos fertilizantes que utiliza, e a Rússia responde por 23% dessas importações. A eventual falta de potássio é a que mais preocupa o setor e “certamente vai haver desabastecimento mundial” desse nutriente, dizem analistas.
O nitrogênio é obtido a partir do gás natural, combustível do qual a Rússia é o segundo maior produtor do mundo e o maior exportador. O fósforo e o potássio, por outro lado, são produtos minerais dos quais o país de Vladimir Putin tem minas abundantes.
As mudanças climáticas e o crescimento das populações já vinham aumentando os desafios que o sistema global de produção de alimentos enfrentava antes mesmo do início da pandemia. O executivo-chefe da Yara International descreve a guerra como “uma catástrofe em cima de uma catástrofe”, destacando o quão vulnerável a choques a cadeia global de fornecimento de alimentos está atualmente. Um dos principais exemplos é a pandemia de covid-19.
Por causa de fatores como pandemia, inflação e desemprego, a fome atingiu no Brasil 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivem com algum grau de insegurança alimentar, número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Penssan.
O aumento no número de brasileiros passando fome, de 10,3 milhões em 2018, para 19,1 milhões em 2020, representa um crescimento de 85% em dois anos.
A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome propriamente dita.
Fonte: DW, BBC, Ambiente Brasil, CNN.