Cerca de 98% dos alertas de desmatamento registrados no Brasil desde janeiro de 2019 não foram autorizados ou foram alvos de fiscalização por órgãos do governo federal, aponta o Monitor da Fiscalização do Desmatamento, uma nova ferramenta online lançada nesta terça-feira (3). O número revela o alto índice de impunidade dos ilícitos ambientais no país.
O Monitor da Fiscalização é uma iniciativa do MapBiomas, liderada pelas equipes do Instituto Centro de Vida (ICV) e Brasil.IO. Para chegar à cifra da impunidade, os pesquisadores cruzaram dados de alerta de desmatamento do Mapbiomas com as autorizações de supressão e de uso alternativo do solo contidas no Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor) e com autos de infração e embargos lavrados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Entre janeiro de 2019 e março de 2022, foram emitidos 199.520 alertas de desmatamento, sendo que 194.964 continham indícios de ilegalidade e não sofreram ações por parte do governo federal.
Isto é, apenas 2,17% dos alertas foram fiscalizados. Quando considerada a área desmatada, a ferramenta mostrou que as ações de fiscalização registradas alcançaram 13,1% do total de desmatamento detectado desde 2019.
Dos mais de 199 mil alertas gerados, três quartos estavam na Amazônia (149.631). Também nesse bioma o índice de impunidade chegou a 98% dos alertas gerados, sendo que apenas 196 alertas estavam sobrepostos com áreas que continham autorização de supressão, segundo a ferramenta.
Apenas em abril, na Amazônia foram 423 km² de área com alertas de desmatamento, de acordo com o Deter, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O número é menor do que o registrado em 2021, quando a área bateu o recorde da série histórica: 579 km². De qualquer forma, ambos os anos apresentaram valores acima da média registrada para o mês de abril (2015 a 2020), que estava em 342 km².
“A aplicação de multas, apreensões, embargos, interdições, entre outras medidas dos órgãos competentes, podem impedir danos ambientais, punir infratores e evitar futuras infrações ambientais […] Mas os dados do Monitor mostram que a impunidade ainda marca o desmatamento ilegal no Brasil”, disse o coordenador geral do MapBiomas, Tasso Azevedo.
Impunidade no nível estadual
A inação por parte do governo federal fica ainda mais evidente quando os dados são comparados com os índices de alguns estados, como Mato Grosso, Minas, São Paulo e Goiás, também avaliados pelo Monitor.
Em Mato Grosso, por exemplo, estado que historicamente sempre esteve nas primeiras posições do ranking de desmatamento na Amazônia, as ações de fiscalização por parte do governo estadual alcançaram 29,5% do total de alertas gerados no período (13 mil alertas). Quando considerada a área total dos alertas que sofreram ações de fiscalização ou tiveram autorização, o percentual sobe para 41%.
Em Minas Gerais, as ações de fiscalização ou autorizações emitidas pelo governo estadual se sobrepuseram a 22,4% dos alertas de desmatamento publicados no Estado. Em São Paulo, esse número é de 21%, e em Goiás 10,3%.
Já o Pará, líder do ranking de desmatadores da Amazônia desde 2006, também avaliado pela plataforma do MabBiomas, a situação de impunidade se repete no nível estadual: apenas 1,8% dos alertas foram embargados pelo governo paraense ou possuem autorização, o que representa 9,8% do desmatamento total publicado.
Para Renato Morgado, especialista em Democracia Participativa da Transparência Internacional, a abertura de dados como os do monitor vai fornecer mais subsídios para a ação de órgãos de controle, como o Ministério Público e Tribunais de Contas.
“Um ponto essencial da ferramenta é que ela fomenta o controle institucional. Quando esses dados vêm a público sistematizados, ao saber o nível de esforço dos órgãos ambientais, é possível uma atuação mais estruturada do Ministério Público, do Tribunal de Contas. A ausência da emissão e cobrança de multas chega a bilhões de reais, por exemplo, e isso pode ser visto como uma renúncia de receita na qual os Tribunais de Contas têm atribuição para olhar”, explicou o especialista, em live de lançamento da iniciativa.
Apesar do grande número de informações já disponíveis na plataforma, nos próximos meses estão previstos vários outros aprimoramentos. “Em relação aos próximos passos, o primeiro é ampliar o número de estados que tem no Monitor. Para isso, precisamos avançar na abertura ou qualificação das bases [de dados] que temos pelos estados. A próxima etapa é conseguir cruzar essas informações com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outras categorias fundiárias. A gente também quer criar uma busca direta aos alertas de desmatamento e desenvolver um API [Interface de Programação de Aplicação] e um mapa interativo”, explicou Ana Paula Valdiones, coordenadora do ICV e uma das responsáveis pela plataforma, também durante o evento de lançamento.
O que falta para fiscalizar?
Os especialistas entrevistados pelo g1 apontam uma série de fatores – alguns recentes, mais agudos no governo atual, e outros mais crônicos, historicamente recorrentes no Brasil.
Um dos problemas da atual gestão, apontado em relatório do Observatório do Clima, rede que reúne mais de 70 entidades da sociedade civil, divulgado em fevereiro, é que o principal órgão federal responsável pela fiscalização do desmate não está gastando o próprio dinheiro.
O Ibama liquidou 41% dos R$ 219 milhões que estavam disponíveis para fiscalizar os biomas brasileiros contra crimes ambientais, entre eles a Amazônia e o Cerrado. Nos governos anteriores, o Ibama costumava gastar entre 86% a 92% dos recursos disponíveis para fiscalização.
Já um dos fatores crônicos é a falta de profissionais do Ibama para autuação na Amazônia. Ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo diz que a falta de fiscais em campo é um problema antigo, impulsionado pela pandemia e pelo aumento no pedido de aposentadorias. Afirma ainda que a fiscalização deve ser feita por pessoas treinadas, mediante planejamento prévio e “com muito dado de satélite, rastreamento da cadeia produtiva, e ligação com outros ilícitos ambientais”, disse ao g1.
Fonte: ((O))Eco, G1.