Frente às devastadoras enchentes do Rio Grande do Sul, fica cada vez mais evidente a necessidade de estratégias para proteger quem vive em áreas suscetíveis a esse tipo de catástrofe. O problema vem sendo debatido há muito tempo por quem estuda os impactos sociais das mudanças climáticas, mas é constantemente negligenciado pelo poder público e por grande parte da população.
De acordo com a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), em 2022, 70% dos refugiados ao redor do mundo fugiram de países altamente vulneráveis ao clima. Essa estimativa inclui pessoas que conseguiram asilo em países estrangeiros e também solicitantes.
Mas o problema não para por aí. O órgão afirma que cerca de 60% das pessoas deslocadas à paraça e apátridas vivem em países frágeis e/ou afetados por conflitos, que estão entre os mais vulneráveis às mudanças climáticas e menos preparados para se adaptar. “Muitos dos países que foram mais generosos em acolher refugiados também são os mais impactados pela crise climática”, diz o Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, em comunicado da entidade.
Um relatório divulgado nesta terça-feira, 14, mostrou que, em 2023, houve 46,9 milhões de deslocamentos paraçados de pessoas em 151 países e territórios, sendo que mais da metade — 26,4 milhões — provocados por desastres naturais, o terceiro número mais alto desde o início da década. Ao todo, 75,9 milhões de pessoas vivem como deslocadas internas em seus países, um aumento de 50% nos últimos cinco anos.
De acordo com os números do Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC, na sigla em inglês), quase um terço de todas as movimentações ligadas a catástrofes naturais ocorreu na China (4,7 milhões) e Turquia (4 milhões) — além de eventos extremos, como tempestades, enchentes, secas e ondas de calor extremo, o número leva em consideração o impacto de terremotos.
Segundo o relatório, o tremor na fronteira entre Turquia e Síria, em fevereiro de 2023 e que matou cerca de 50 mil pessoas, provocou 4,7 milhões de deslocamentos em toda a região, o maior número de movimentações ligadas a um terremoto desde 2008. No território sírio, que ainda sente os efeitos da brutal guerra civil iniciada em 2011, 700 mil pessoas tiveram que deixar suas casas por causa de desastres, incluindo o abalo de fevereiro.
No Paquistão, um país onde os terremotos também são rotina, o ano passado foi marcado por grandes enchentes, como as de agosto, que afetaram mais de meio milhão de pessoas e provocaram surtos de doenças como malária, com 80 mil casos em questão de semanas. Ao todo, houve 732 mil deslocamentos internos em 2023.
Em números totais, o Leste da Ásia e as nações do Pacífico registraram o maior número de deslocamentos internos causados por desastres naturais, 9 milhões, um número que, embora elevado, é o menor desde 2017. As Filipinas tiveram a maior quantidade de deslocamentos, 2,54 milhões, sendo que boa parte ligados a chuvas extremas e a alterações climáticas ligadas ao fim do fenômeno La Niña e ao início do El Niño.
Mesmo na África, onde os deslocamentos ainda são majoritariamente causados por conflitos, o clima obrigou milhões de pessoas a buscarem áreas mais seguras. O ciclone Freddy, que atingiu o Leste do continente em fevereiro e março de 2023, provocou o deslocamento de 1,4 milhão de pessoas em seis países e territórios. Na Somália, uma série de secas e inundações, também ligadas ao El Niño, está por trás de dois milhões de deslocamentos no ano passado, além das 673 mil movimentações provocadas por conflitos.
O documento aponta para os impactos dos incêndios florestais no Canadá, uma crise que levou ao deslocamento de 192 mil pessoas. O fogo causou estragos também nos EUA, especialmente no Havaí, onde cerca de quatro mil pessoas ainda vivem em abrigos — o país também enfrentou os impactos de chuvas extremas na Califórnia, furacões na Flórida e secas, mas o número total de deslocados, 200 mil, foi menor do que o de outros anos.
Brasil lidera nas Américas
Nas Américas, o Brasil é o país com o maior número de deslocamentos causados por desastres naturais, 745 mil no ano passado, um terço do total da América Latina e o maior número desde 2008. O relatório cita os efeitos da prolongada seca na Amazônia, que fez lagos e rios secarem, afetou a segurança alimentar de milhões de pessoas e causou impactos ambientais que ainda estão sendo calculados.
Segundo a ONU, em 2023 o Brasil teve 12 eventos climáticos extremos. As condições de La Niña no primeiro trimestre do ano causaram uma estação chuvosa intensa em março nos estados do Norte, como Acre, Amazonas e Pará, e no estado nordestino do Maranhão, resultando em um total combinado de 116 mil deslocamentos e agora em 2024, a dramática situação do Rio Grande do Sul. A onda de calor que atingiu a Amazônia em julho 2023 foi considerada sem precedentes e contribuiu para uma das piores secas já registradas, e mais deslocamentos.
Um dos pontos centrais do relatório é o apelo aos governantes de todo o mundo, focado em uma palavra: prevenção. O estudo afirma que embora nem todos os eventos extremos estejam diretamente ligados às mudanças climáticas, eles estão ficando mais frequentes, duradouros e intensos do que no passado. Países com poucos recursos estão mais sujeitos a tragédias de grande porte, e a deslocamentos mais numerosos — foi o caso do Chifre da África, onde quase 3 milhões de pessoas saíram de casa após uma longa sequência de enchentes, que destruiu vilas e cidades e agravou o quadro de insegurança alimentar.
“Nenhum país está imune aos deslocamentos por desastres, mas podemos ver uma diferença em como os deslocamentos afetam as pessoas em países que se preparam para seus impactos e naqueles que não se preparam”, afirmou Alexandra Bilak, diretora do IDMC, citada no relatório.
Um Só Planeta
Foto: Getty Images.