Mesmo sendo um bioma com espécies teoricamente adaptadas a climas extremos, os pesquisadores identificaram que a Caatinga é muito mais vulnerável às mudanças climáticas do que se imaginava.
Proteger áreas mais sensíveis e restaurar a conectividade da vegetação é crucial para a resiliência dos ecossistemas da Caatinga; o bioma é um dos menos protegidos do Brasil: menos de 9% estão amparados por Unidades de Conservação.
No Brasil e em grande parte no mundo, a floresta amazônica – e outras florestas tropicais úmidas – está no centro das preocupações com as mudanças climáticas. Pouco se estuda e quase nada se fala, no entanto, sobre as consequências do clima para os biomas tropicais secos e quentes, como é o caso da Caatinga, que ocupa cerca de 800 mil quilômetros quadrados, principalmente no nordeste brasileiro. Mas aos poucos isso começa a mudar.
Pesquisadores das universidades federais da Paraíba (UFPB), de Pernambuco (UFPE), de Viçosa (UFV), da estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto Federal Goiano (IFG) realizaram um estudo no qual concluíram que 99% das comunidades de plantas da Caatinga terão perda de espécies até 2060, com uma simplificação da composição de tipos de plantas em 40% da região.
Os cientistas analisaram dados de centenas de coleções científicas, de herbários e da literatura para organizar um banco de dados inédito, com cerca de 420 mil registros de ocorrência de 3.060 espécies de plantas do bioma. “Esses dados foram complementados pela forma de crescimento de cada espécie, isto é, se ela é arbórea, arbustiva, herbácea, suculenta, erva ou trepadeira”, conta o biólogo Mario Ribeiro de Moura, da Unicamp, autor principal do trabalho.
O passo seguinte envolveu a construção de modelos estatísticos e de inteligência artificial, que possibilitaram o mapeamento da distribuição geográfica das plantas da Caatinga, tanto para o presente quanto para diversos cenários futuros de mudanças climáticas. “Esse tipo de abordagem torna possível obter um resultado consensual entre os cenários testados”, explica Moura. “Ou seja, é possível entender as regiões onde todos os modelos apresentam respostas similares e também onde as diferenças foram mais marcantes.”
De acordo com ele, quando essas projeções são agregadas para todas as espécies, é possível avaliar como as mudanças climáticas poderão afetar a riqueza, a composição e a estrutura das comunidades de plantas. A riqueza corresponde à quantidade de espécies ali encontrada, enquanto que a composição se refere a quais espécies de plantas estão presentes na comunidade. Já a estrutura refere-se à proporção de espécies em cada tipo de forma de crescimento, ou seja, se o agrupamento possui mais tipos arbóreos ou não-arbóreos.
Segundo Moura, no geral, com as mudanças climáticas, espécies arbóreas e raras serão substituídas por espécies não arbóreas e generalistas, ou seja, capazes de ocorrer em várias regiões do bioma. “Esse tipo de mudança na estrutura da vegetação pode causar uma diminuição de serviços ecossistêmicos, como produção de biomassa vegetal e armazenamento de carbono”, alerta.
O pesquisador explica que, durante a fotossíntese, as plantas armazenam carbono da atmosfera para possibilitar o crescimento de galhos, raízes e folhas, ao mesmo tempo que liberam oxigênio. “Esses serviços ecossistêmicos são chamados respectivamente de armazenamento e sequestro de carbono”, diz. “A diminuição da quantidade de árvores reduzirá o volume desses serviços, o que retroalimentará ainda mais a crise climática.”
Mais vulnerável do que se imaginava
Para o biólogo Daniel de Paiva Silva, do IFG, que também participou do estudo, os resultados obtidos pela equipe são “nevrálgicos” em relação às mudanças climáticas. “Naturalmente, as espécies da Caatinga são adaptadas às condições extremas de temperatura que ocorrem no bioma”, explica. “Observar tal resultado em plantas que, em teoria, seriam mais ‘climaticamente protegidas e adaptadas’ em relação a temperaturas e climas extremos levanta uma preocupação em relação às comunidades de espécies vegetais de outros biomas, que serão igualmente afetadas pelas mudanças climáticas, mas que não são tão adaptadas a climas extremos como as da Caatinga.”
Em outras palavras, com a pesquisa pode-se concluir que, mesmo sendo um bioma com espécies teoricamente adaptadas a climas extremos, a Caatinga é muito mais vulnerável às mudanças climáticas do que se imaginava. “Se uma região com espécies adaptadas a tais climas será significativamente afetada em um curto prazo, importantes preocupações podem surgir em relação a outros biomas brasileiros, com plantas não preparadas e adaptadas ao aquecimento global, como a Amazônia, Mata Atlântica e Pantanal, em que as condições são bem mais amenas”, explica Silva.
De acordo com Moura, além disso, um diferencial do estudo é que, para fornecer projeções mais robustas, a estrutura de modelo criada pela equipe incluiu esforços para minimizar problemas relacionados à incerteza nas projeções climáticas, limitações de dispersão das espécies e sua aplicabilidade a cenários futuros. “A abordagem empregada sintetiza mais de 1 milhão de projeções das possíveis respostas que as 3.060 espécies de plantas poderão ter com as mudanças climáticas”, diz. “Essa multitude de cenários e avaliações visa fornecer as melhores projeções possíveis, juntamente com as incertezas associadas a elas [para mapear os locais onde as previsões são sólidas].”
Para a bióloga e zoóloga Thaís Guedes, da Unicamp, que não participou da equipe que realizou a pesquisa, os resultados do trabalho são mais um alerta para que os governantes e a sociedade abordem o tema das mudanças climáticas e acolham com seriedade e planejamento de longo prazo para manter as florestas tropicais secas da Caatinga.
“Eles nos indicam a urgência de pensarmos ações eficazes de conservação da biodiversidade brasileira em um mundo que está em mudança, seja com os impactos das alterações climáticas ou da paisagem, em virtude de diversas outras atividades humanas, como mineração, agropecuária e fogo, por exemplo”, diz ela.
Guedes também chama a atenção para outro ponto. “Embora o trabalho tenha sido conduzido utilizando plantas, os resultados mostram que haverá uma mudança significativa na paisagem, que vai perder sua heterogeneidade e ficar mais homogênea”, diz. “Como zoóloga que estuda os répteis e anfíbios dessa região, recebo os resultados com bastante preocupação, pois para mim essa homogeneização da vegetação atuará como um efeito ‘bola de neve’, promovendo também a perda de espécies da fauna.”
Por isso, segundo Moura, os resultados da pesquisa mostraram que proteger áreas mais sensíveis e restaurar a conectividade da vegetação é crucial para a resiliência dos ecossistemas da Caatinga. “Políticas de conservação e manejo florestal que integrem os níveis municipal, estadual e federal são urgentes”, defende. “Envolver as comunidades locais e partes interessadas que dependem de recursos da caatinga é vital para o sucesso dessas iniciativas.” Vale lembrar que o bioma é um dos menos protegidos do Brasil: menos de 9% estão amparados por Unidades de Conservação.
Fonte: Mongabay.
Foto: Willianilson Pessoa.