O desafio do setor aéreo para anular sua pegada de carbono

As 290 companhias dos 120 países que integram a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata) aprovaram em outubro de 2021 o compromisso de reduzir gradualmente a emissão líquida de dióxido de carbono (CO2) da aviação comercial até 2050, quando os voos deverão ser neutros em carbono.

Antes disso, todas as empresas aéreas terão que atender a uma resolução da Organização Internacional da Aviação Civil (Icao), uma das agências das Nações Unidas, que estabelece que as emissões de gases de efeito estufa (GEE) do setor se estabilizem nos patamares observados em 2019. Embora menos ambiciosa do que a meta definida pela Iata, a determinação da Icao, prevista no Mecanismo de Redução e Compensação de Emissões da Aviação Internacional (Corsia), é mandatória.

Estima-se que o setor aéreo responda por 2,5% das emissões globais de GEE. Se alcançada, a meta da Iata permitirá reduzir em 21,2 gigatoneladas (Gt) as emissões de CO2 nas próximas três décadas. Para isso, as companhias terão que aumentar a eficiência das aeronaves, melhorar rotas de voo, desenvolver novos sistemas de propulsão e estabelecer mecanismos de compensação, quando a emissão para inevitável. A principal mudança prevista, que poderá reduzir 65% das emissões, é a substituição do querosene de aviação por combustíveis sustentáveis, denominados SAF (Sustainable Aviation Fuels).

O planejamento da Iata prevê que o mundo precisará de 7,9 bilhões de litros de SAF em 2025 para atender 2% da necessidade total de combustível, e a demanda avançará até 449 bilhões de litros em 2050. O consumo atual de querosene de aviação é estimado em 390 bilhões de litros anuais e a produção de SAF é de apenas 14 milhões de litros – Estados Unidos, Alemanha e França dominam o incipiente mercado global do combustível.

O Brasil reúne conhecimento tecnológico e disponibilidade de insumos para ser um dos principais produtores globais de SAF, sustentam especialistas no tema, mas ainda não tem um plano de ação definido para ocupar esse espaço no cenário global. Outro empecilho, não apenas no Brasil, mas no mundo todo, é o custo do combustível sustentável, hoje pelo menos duas vezes mais alto do que o fóssil.

Em um primeiro momento, o bioquerosene de aviação, obtido com álcool, gordura, óleos vegetais e outros insumos derivados de biomassas, desponta como a aposta mais avançada de SAF para o abastecimento das aeronaves. Mas, universidades e centros de pesquisa no Brasil e em diversos países do mundo também trabalham no desenvolvimento de novas tecnologias capazes de utilizar o CO2 capturado na atmosfera ou em processos de fabricação e refino de petróleo na produção de combustíveis sustentáveis.

O estudo “Disponibilidade de matéria-prima para combustível sustentável de aviação no Brasil: Desafios e oportunidades”, realizado pela organização global dedicada à sustentabilidade Roundtable on Sustainable Biomaterials (RSB), em parceria com a consultoria Agroicone e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concluiu que o Brasil tem potencial para produzir 9 bilhões de litros de biocombustíveis por ano, utilizando para essa finalidade apenas matérias-primas residuais, como bagaço e palha de cana-de-açúcar, óleo de cozinha usado, sebo bovino, resíduos de madeira e gases de combustão de refino do aço.

“É um volume de produção suficiente para atender toda a demanda brasileira, de 7,8 bilhões de litros por ano, e ainda gerar excedente para a exportação”, diz a bióloga Maria Carolina de Barros Grassi, gerente de políticas e inovações da RSB na América Latina.

O potencial brasileiro de produção de combustíveis sustentáveis de aviação é ainda maior quando levada em conta a possibilidade de aproveitamento de insumos não residuais. É o que demonstra o portal SAFMaps, que reúne informações sobre as matérias-primas brasileiras mais promissoras para a fabricação de SAF.

A equipe do SAFMaps considera em suas análises plantas como palma, macaúba, soja, milho e a própria cana-de-açúcar e o eucalipto, e não apenas seus resíduos, e avalia o aproveitamento de insumos obtidos exclusivamente de forma sustentável em áreas já antropizadas, ou seja, alteradas por ação humana.

Biorrefinarias

Apesar das vantagens competitivas, o Brasil ainda não produz bioquerosene. “A falta de um marco legal para o SAF inibe os investimentos”, ressalta Erasmo Carlos Battistella, CEO da BSBIOS, uma das maiores produtoras brasileiras de biodiesel. Segundo o executivo, as biorrefinarias demandam somas de grande porte e levam de quatro a cinco anos para serem implementadas.

A BSBIOS ergue no Paraguai aquela que deve ser a primeira fábrica da América do Sul para a produção de SAF. A biorrefinaria de US$ 1 bilhão deverá entrar em operação em 2025 com capacidade de processar 20 mil barris diários. A produção será pela rota Hefa e utilizará como insumo óleos vegetais, gordura animal e óleo de cozinha usado. “O foco é atender o mercado internacional, mais avançado que o regional”, diz Batistella.

Em abril, a Brasil Biofuels, produtora de óleo de palma, e a distribuidora Vibra Energia anunciaram um investimento de R$ 2 bilhões em uma biorrefinaria de 500 milhões de litros de biocombustíveis especiais por ano em Manaus, prevista para iniciar operação em 2025. Um dos produtos previstos é o SAF.

Patentes nacionais

Dois projetos inovadores para a produção de SAF foram desenvolvidos pela equipe do engenheiro químico Rubens Maciel Filho, coordenador do Laboratório de Otimização, Projeto e Controle Avançado da Faculdade de Engenharia Química da Unicamp. As pesquisas, que contaram com apoio da FAPESP, renderam duas patentes já concedidas, mas ainda não testadas (ver Pesquisa FAPESP no 209). “Precisaríamos de R$ 30 milhões a R$ 40 milhões para montar uma planta-piloto”, relata Maciel.

Em um dos processos, o bioquerosene de aviação é produzido a partir do biodiesel. Para isso, acrescenta-se um passo a mais na etapa de refino do biodiesel por meio de um catalisador químico. No outro, o etanol ou o metanol é submetido a um processo de purificação por destilação molecular, atingindo as características necessárias que o qualificam como bioquerosene. No primeiro processo, além de bioquerosene, pode-se gerar diesel e gasolina renováveis. “São processos rápidos e econômicos que aproveitam estruturas de produção de biocombustíveis já existentes no país”, conta o pesquisador.

Atualmente, o uso de SAF nas aeronaves obedece a um limite regulatório de 50% em uma mistura com querosene fóssil. Segundo Loomis, em teoria não existe um impedimento para que os aviões voem apenas com biocombustíveis, mas testes e certificações ainda precisam ocorrer. A Boeing planeja que todas suas aeronaves estejam certificadas para 100% SAF até 2030. Essa também é a meta da Embraer. Para o engenheiro Marcelo Gonçalves, especialista em desenvolvimento de produto da fabricante brasileira, todas as aeronaves da companhia já estão aptas a voar com uma mistura de 50% SAF.

Fonte: Revista Fapesp.

Foto: Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP.