A Síndrome de Dravet é apenas uma das muitas doenças neurológicas que se agravam com o aumento das temperaturas, diz Sanjay Sisodiya, da University College London, um dos pioneiros no estudo dos impactos das mudanças climáticas sobre o cérebro.
Como neurologista especializado em epilepsia, ele ouve com frequência relatos da família de seus pacientes contando que as crises pioram durante ondas de calor.
“E eu pensei comigo mesmo: ‘é claro, por que as mudanças climáticas não afetariam o cérebro?’ No fim das contas, muitos processos cerebrais estão envolvidos na forma como o corpo lida com o calor.”
Ao se aprofundar na literatura científica, Sisodiya descobriu uma série de condições neurológicas que são agravadas pelo aumento da temperatura e da umidade, incluindo epilepsia, AVC (acidente vascular cerebral), encefalite, esclerose múltipla, enxaqueca, entre outras.
Ele também identificou que os efeitos das mudanças climáticas sobre o cérebro humano já estão se tornando visíveis.
Durante a onda de calor que atingiu a Europa em 2023, por exemplo, cerca de 7% das mortes adicionais estavam relacionadas diretamente a problemas neurológicos.
Percentuais semelhantes foram vistos durante a onda de calor no Reino Unido em 2022.
Mas o calor também pode alterar a forma como nosso cérebro funciona, nos deixando mais violentos, irritados e depressivos.
Assim, diante de um planeta que continua esquentando por causa das mudanças climáticas, qual impacto disso sobre o nosso cérebro?
Agravamento de condições neurológicas
O cérebro humano, em média, raramente ultrapassa 1°C acima da temperatura corporal.
Ainda assim, por ser um dos órgãos que mais consomem energia no nosso corpo, ele produz uma quantidade considerável de calor próprio enquanto pensamos, lembramos de informações e reagimos ao mundo ao nosso redor.
Isso significa que o corpo precisa trabalhar duro para manter o cérebro resfriado. A circulação sanguínea, por meio de uma complexa rede de vasos, ajuda a manter essa temperatura, levando embora o calor em excesso.
Isso é necessário porque as células cerebrais são extremamente sensíveis ao calor. E o funcionamento de algumas moléculas responsáveis por transmitir mensagens entre essas células também parece depender da temperatura, ou seja, elas param de trabalhar de forma eficiente se o cérebro estiver muito quente ou muito frio.
“Nós não compreendemos totalmente como os diferentes elementos desse quadro complexo são afetados” diz Sisodiya. “Mas podemos pensar nisso como um relógio cujos componentes deixem de funcionar em harmonia.”
Embora temperaturas extremas alterem a forma como nosso cérebro trabalha — podendo, por exemplo, afetar nossa capacidade de tomar decisões e nos levar a assumir mais riscos — quem tem alguma condição neurológica costuma ser mais gravemente impactado.
Isso ocorre por muitas razões. Em algumas doenças, por exemplo, a capacidade de suar pode ficar comprometida.
“A termorregulação é uma função do cérebro e pode ser prejudicada se certas partes do cérebro não estiverem funcionando adequadamente”, diz Sisodiya.
Já em alguns tipos de esclerose múltipla, a temperatura central do corpo parece ser alterada.
Além disso, alguns medicamentos para condições psiquiátricas e neurológicas, como a esquizofrenia, afetam a regulação da temperatura, tornando a pessoa mais vulnerável à insolação ou hipertermia, como é chamada clinicamente, e aumentando o risco de morte relacionada ao calor.
As ondas de calor — especialmente quando acompanhadas de temperaturas elevadas durante a noite — podem prejudicar o sono, afetar o humor e potencialmente piorar os sintomas de algumas condições de saúde.
“Para muitas pessoas com epilepsia, uma noite mal dormida pode aumentar o risco de ter uma convulsão”, afirma Sisodiya.
Evidências apontam que internações hospitalares e taxas de mortalidade entre pessoas com demência também aumentam durante ondas de calor.
Parte disso se deve à idade — pessoas mais velhas têm mais dificuldade de regular a temperatura corporal —, mas o comprometimento cognitivo também pode dificultar a adaptação ao calor extremo.
Eles podem, por exemplo, não se hidratar o suficiente, esquecer de fechar as janelas, ou sair de casa em horários que não deveriam.
Aumento de casos de AVC
O aumento da temperatura também tem sido associado ao crescimento de casos e mortes por AVC.
Em um estudo que analisou dados de mortalidade por AVC em 25 países, pesquisadores descobriram que, a cada 1.000 mortes, os dias mais quentes contribuíam para duas mortes adicionais.
“Pode não parecer muito, mas considerando que há cerca de sete milhões de mortes por AVC por ano no mundo, o calor pode estar contribuindo para mais de 10 mil mortes adicionais anualmente”, explica Bethan Davies, geriatra na University Hospitals Sussex, no Reino Unido.
Um número crescente de evidências indica que pessoas mais velhas e aquelas em situação socioeconômica vulnerável correm mais risco de morrer em decorrência do calor externo.
O calor excessivo causado pelas mudanças climáticas também pode sobrecarregar o cérebro, deixando-o mais vulnerável a danos que podem levar ao desenvolvimento de doenças neurodegenerativas.
O calor ainda afeta a barreira hematoencefálica, que normalmente protege o cérebro, tornando-o mais permeável e aumentando o risco de que toxinas, bactérias e vírus entrem no tecido cerebral.
Essa questão pode se tornar ainda mais crítica à medida que as temperaturas sobem, já que o aumento de calor favorece a expansão de mosquitos que transmitem vírus capazes de causar doenças neurológicas, como zika, chikungunya e dengue.
Mas os efeitos das altas temperaturas sobre o cérebro ainda estão sendo investigados pelos cientistas. O calor afeta as pessoas de diferentes formas —algumas se adaptam bem, enquanto outras consideram insuportável.
“Vários fatores podem explicar essa sensibilidade diferente, e um deles pode ser a predisposição genética”, afirma Sisodiya.
“A era do aquecimento global acabou, a era da ebulição global chegou”, anunciou o secretário-geral da ONU, António Guterres, quando julho de 2023 foi confirmado o mês mais quente já registrado.
As mudanças climáticas estão entre nós e se intensificando. A era do cérebro “superaquecido” está apenas começando.
Fontes: Folha SP, BBC News.
Imagem: Fred Tanneau/AFP via Getty Imag
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