O ouro de sangue e os peixes da Amazônia

Nessa semana o Brasil tomou conhecimento dos resultados estarrecedores de um estudo científico capitaneado por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Greenpeace, Iepé, Instituto Socioambiental e WWF-Brasil.

O trabalho – inédito – mostrou que mais de 20% dos peixes consumidos em seis estados da Amazônia brasileira (Pará, Acre, Rondônia, Roraima, Amazonas e Amapá) estão contaminados por mercúrio em concentração bem acima do permitido. Roraima foi a unidade da Federação recordista, onde a contaminação, segundo a pesquisa, atinge absurdos 40%.

Sabemos que uma das atividades mais nocivas ao meio ambiente é a mineração (garimpo) ilegal de ouro, em especial aquela que se utiliza de mercúrio para sua lavra. O mercúrio encontra-se entre as dez substâncias que mais preocupam a Organização Mundial da Saúde – OMS, devido ao impacto ambiental deletério que acarreta, tanto para a saúde das pessoas como em prejuízo direto à biodiversidade. No caso do Brasil, em especial à ictiofauna – fauna de peixes – dos rios da Bacia Amazônica. A contaminação de mercúrio na floresta tropical – efeito colateral da mineração de ouro – cria um espiral de envenenamento com potencial de impacto em grande parte da cadeia alimentar da fauna aquática da região, promovendo um looping praticamente sem fim, em todos os ecossistemas atingidos pelo flagelo.

Trata-se de um metal extremamente tóxico para o sistema nervoso central e periférico. A inalação de vapor de mercúrio pode ser prejudicial aos sistemas digestivo e imunológico, e aos rins e pulmões, com consequências graves e muitas vezes fatais. Os sais inorgânicos de mercúrio são igualmente corrosivos para a pele, olhos e para trato intestinal e, quando ingeridos, podem ser tóxicos para os rins, conforme a Organização Mundial da Saúde – OMS. O descarte de mercúrio provocado pelos garimpos representa, então, uma verdadeira desgraça para a Natureza, em especial para as populações ribeirinhas da Amazônia.

É importante registrar que essa situação, de crise sanitária de alta gravidade, se deve, em parte, à desastrosa política ambiental levada a cabo nos quatro anos do governo Bolsonaro, que quando não fazia vista grossa para a lavra ilegal de ouro em terras indígenas, a incentivava despudoradamente com regras e concessões absurdas.

O delegado Alexandre Saraiva, que chefiou por nove anos seguidos três superintendências regionais da PF na Região Norte, afirma que essa notícia (da extensa e profunda contaminação de peixes por mercúrio) poderá afetar frontalmente a indústria pesqueira naquelas unidades da Federação, trazendo prejuízos incomensuráveis para o setor. Hoje, com um percentual de 20% do pescado envenenado, comer um peixe, em alguns municípios da Amazônia, é como fazer uma roleta russa.

Quanto ao mercúrio, há poucos caminhos de entrada (no território brasileiro) que são efetivamente conhecidos pelas nossas autoridades policiais ou ambientais. As unidades da Polícia Federal mais ao norte da Amazônia assinalam a possível entrada de mercúrio por rotas fantasmas (como um câmbio negro), que teriam como origem a Guiana, o Suriname e a Venezuela, adentrando o Brasil pela própria floresta. Nas unidades da Polícia Federal mais ao sul (em relação à Amazônia), tivemos registros de quantidades de mercúrio que teriam entrado em nosso país de forma legal – por São Paulo, vindo do exterior (Espanha e Itália), e também do Paraguai.

A nossa PF tem o conhecimento de que o mercúrio é comercializado nas regiões próximas aos garimpos (áreas de mineração), invariavelmente em pequenas quantidades. Um envasado de um litro é dividido em pequenas porções, que por sua vez atendem perfeitamente à demanda de inúmeros garimpeiros. Não se passam recibos das aquisições e nem se identificam os fornecedores. A compra e venda é, grosso modo, realizada nas sombras, à exemplo do que ocorre com comércio de drogas.

Nos casos em que nos deparamos com apreensões de porções de mercúrio – reiteradamente em pequenas quantidades e acondicionados em garrafas de porte médio, de no máximo um litro – muitas vezes não há qualquer referência de origem, de produtor, de distribuidor ou de importador. Umas das poucas vezes em que a Polícia Federal brasileira apreendeu mercúrio em seu envase original, eram quantidades provenientes da Espanha e, em uma outra ocasião, tinha origem italiana.

A questão do uso de mercúrio, bem como do seu tráfico em território brasileiro, vem, então, sendo tratada como um delito periférico em relação a outros crimes considerados mais gravosos. A lavra ilegal do ouro (o subsolo é considerado pela Constituição Federal como patrimônio da União) e a degradação ambiental causada pelas atividades garimpeiras são os delitos centrais nesse caso, que inclusive provocam as ações do IBAMA e da PF.

Por oportuno, em meados da década de oitenta, a Polícia Federal brasileira colocou em prática uma interessante iniciativa que foi denominada “Programa Interdição”, que se destinava a controlar no território brasileiro a comercialização de éter e acetona – insumos necessários para a produção de cocaína. Esse projeto se desenvolveu muito bem e, depois de muito tempo, sedimentou-se como uma unidade de polícia administrativa que presta inestimável suporte à atividade de repressão a entorpecentes. Enfim, passou a ser um setor exclusivo para controle da comercialização desses produtos químicos no país.

Desta feita, algo como um projeto de viés complementar poderia ser replicado em relação ao mercúrio. Seria uma forma de buscar o monitoramento sistêmico do mercado e do fluxo de mercúrio no país, e com isso otimizando os resultados a serem obtidos com as atividades investigativas e periciais no tocante à utilização ilegal do metal em garimpos de ouro na região. A partir dessa atividade de controle de comércio de mercúrio, poderíamos, ainda, alimentar bancos de dados exclusivos, que auxiliariam nas investigações e no próprio rastreio do metal. Passaríamos a olhar o mercúrio em relação ao crime de lavra ilegal de ouro, da mesma forma que olhamos o éter e a acetona em relação à produção de cocaína. O setor, que desenvolveria um serviço de natureza administrativa, poderia ficar subordinado à recém criada Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente da Polícia Federal – DAMAZ.

Aliás, a DAMAZ/PF já vem obtendo, com o trabalho de peritos criminais federais, êxito formidável no desenvolvimento de técnicas para o rastreio do ouro ilegal, que é operado por intermédio de um processo denominado fluorescência de raio-x, que determina a assinatura química do ouro, o que possibilita identificar e determinar, com precisão, sua origem ilegal.

Essas expertises e boas práticas poderiam ser ainda compartilhadas com as polícias e autoridades ambientais de outras nações amazônicas, vizinhas do Brasil, buscando assim uniformizar o enfrentamento a um crime que ocorre em toda essa região do subcontinente sul-americano.

Finalmente, não há nada mais atual (e necessário) do que desenvolver, aplicar e difundir alta tecnologia para enfrentamento à criminalidade organizada!

Fonte: Veja.

Foto: Caio Guatelli/VEJA.