Quando iniciou sua carreira como microbiólogo, Warish Ahmed nunca imaginou que uma de suas principais tarefas seria peneirar litros e litros de esgoto bruto recolhidos dos dutos e bueiros do Estado de Queensland, na Austrália.
Ahmed é cientista pesquisador do Meio Ambiente da Organização de Pesquisas Científicas e Industriais da Comunidade Britânica de Nações (CSIRO, na sigla em inglês), na cidade australiana de Brisbane.
Trabalhar com esgoto talvez não seja o emprego favorito de todas as pessoas. Mas considero uma forma valiosa de aprender sobre a saúde da comunidade. É como encontrar ouro líquido.
A chamada vigilância de efluentes é usada há muito tempo como instrumento fundamental para rastrear um pequeno conjunto de patógenos mortais, como o vírus da poliomielite, a bactéria Vibrio cholerae (causadora da cólera) e a Salmonella typhi, a bactéria que causa a febre tifoide. Todos eles são transmitidos pela falta de boas práticas de saneamento.
Mas, nos últimos tempos, principalmente depois da pandemia de covid-19, as autoridades de saúde pública de todo o mundo começaram a perceber que estudar o material presente no esgoto pode ser útil para acompanhar uma variedade muito maior de doenças infecciosas, em tempo real.
O projeto conduzido por Ahmed e sua equipe, em colaboração com a Universidade de Queensland, examinou os níveis de diversos patógenos respiratórios, como influenza, Sars-CoV-2, que causa a covid-19, e vírus sincicial respiratório (VSR).
Todos esses micro-organismos são excretados pelo intestino dos indivíduos infectados e acabam no esgoto recolhido em todo o Estado australiano. O VSR é de interesse específico, devido à sua alta taxa de mortalidade entre os idosos, especialmente quando há condições cardíacas e pulmonares pré-existentes.
Não é apenas a presença de um patógeno específico que interessa os pesquisadores, mas a sua concentração.
“A concentração é altamente valiosa para acompanhar o aumento ou o declínio de doenças”, explica Ahmed. “Concentrações elevadas de uma partícula viral podem indicar aumento da carga viral na comunidade.”
Quando as informações são enviadas para as unidades de saúde pública da região, elas agem como importante mecanismo de alerta precoce de que a incidência de uma doença infecciosa específica está aumentando. E, agora, novas plataformas tecnológicas estão tornando a coleta de dados ainda mais eficiente.
Tradicionalmente, a vigilância dos efluentes envolve o trabalho desagradável e perigoso de coletar manualmente as amostras. Mas, em Queensland, cada encanamento agora é equipado com um dispositivo de coleta que recolhe amostras a cada hora, 24 horas por dia.
Essas amostras são diariamente combinadas para gerar uma mistura que pode ser analisada em instalações especiais com testes PCR — uma técnica molecular empregada para identificar fragmentos de material genético.
Nos Estados Unidos, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças agora mantêm um sistema nacional de vigilância de efluentes, que examina regularmente uma série de patógenos, como a mpox, usando tecnologia fornecida pela empresa Verily, de propriedade da Alphabet (controladora do Google).
Outras startups como a Biobot, criada por alunos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), procuram expandir a vigilância de efluentes para todo o mundo.
Sua plataforma pode não só detectar vírus respiratórios no esgoto, mas doenças alimentares, como norovírus, e os subprodutos metabolizados de drogas como cocaína, fentanil, metanfetamina e nicotina.
Um exemplo é o vírus do sarampo, que é um dos mais contagiosos do planeta. Existe atualmente um surto de sarampo no Reino Unido e a doença também vem crescendo nos Estados Unidos, com 23 casos entre dezembro de 2023 e janeiro de 2024.
O Brasil não registra novos casos da doença desde 2022.
Segurança sanitária nos países pobres
Enquanto a vigilância de efluentes é extensamente utilizada nos Estados Unidos, na Austrália e no Reino Unido (onde está em andamento um programa que usa amostras do esgoto para identificar as regiões do país com maior risco de incidência de pólio), o seu maior impacto provavelmente será a gestão de surtos de doenças em países de baixa renda.
Representantes da PolioPlus — a iniciativa global do Rotary Internacional para erradicar a poliomielite — indicam que a incidência da pólio foi reduzida em 99,9% nos últimos 35 anos, mas a doença permanece sendo um importante problema de saúde pública no Paquistão e no Afeganistão, onde o vírus da poliomielite é endêmico.
“No Paquistão, existem 114 locais de vigilância de efluentes e, no Paquistão, há 33”, afirma a diretora da PolioPlus, Carol Pandak. “Sem a vigilância, seria impossível indicar onde e como o vírus da pólio ainda está circulando.”
No Brasil, o monitoramento do esgoto passou a ser uma ferramenta fundamental para a Prefeitura de São Paulo na sua luta permanente contra o vírus da hepatite A (HAV), uma infecção que causa inflamação hepática e, às vezes, exige o transplante do fígado.
Nos últimos anos, São Paulo sofreu dois grandes surtos de HAV, com 1.872 casos confirados entre 2016 e 2023.
Segundo a virologista Tatiana Prado, da Fundação Oswaldo Cruz, a cidade implementou um programa contínuo de vigilância de efluentes em aeroportos e áreas de risco. O objetivo é monitorar novas emergências de HAV, além de outros vírus e bactérias.
Alerta precoce
Programas similares estão sendo testados em partes da África subsaariana, para detectar tuberculose e até parasitas como Cryptosporidium, que causa um tipo de diarreia.
A vigilância de efluentes, sem dúvida, irá desempenhar um papel cada vez maior para fornecer inteligência para os sistemas de saúde globais sobre todas as formas de patógenos preocupantes.
Os pesquisadores esperam que, nos próximos anos, a vigilância em tempo real comece a gerar novas informações sobre a evolução de muitos vírus comuns. Isso permitirá prever eventuais variantes que possam contornar a imunidade vacinal existente.
Esta informação poderá então ser rapidamente encaminhada para os fabricantes de vacinas, permitindo que eles atualizem suas doses antes que o novo patógeno evoluído esteja mais disseminado na comunidade.
Fontes: BBC News, G1, Terra, Economia em Pauta.
Foto: G1.