Na próxima quarta-feira (27), o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, uma das mais altas instâncias legais do continente, começa a julgar uma ação inédita que pode determinar que os 32 países que integram a corte façam mudanças efetivas para reduzir suas emissões de gases-estufa.
De um lado, seis jovens portugueses, de 11 a 24 anos, que relatam sofrer na pele os efeitos do aquecimento global. Do outro, os governos de alguns dos países mais ricos e poderosos do mundo: todo os membros da União Europeia, além de Rússia, Noruega, Suíça, Reino Unido, Turquia e Ucrânia.
“É uma batalha de Davi contra Golias”, resume, em alusão à história bíblica que opõe um gigante e um ser humano, o advogado Gearóid Ó Cuinn, diretor da ONG britânica Glan (Global Legal Action Network), que apoia juridicamente os jovens.
“Este é um caso sem precedentes. Tanto em sua escala quanto nas suas consequências. É o primeiro caso sobre alterações climáticas apresentado ao tribunal, que é um órgão que pode tomar decisões juridicamente vinculativas [contra os países processados]”, detalhou o especialista à Folha. “Também entra para a história da Justiça, porque nunca tantos países foram obrigados se defenderem simultaneamente em um tribunal.”
Apresentado em 2020, o processo dos jovens portugueses foi inicialmente recebido com ceticismo por muitos juristas do continente, que duvidavam da viabilidade da causa. Ambientalistas e ativistas, por sua vez, rapidamente se engajaram no projeto, que é inteiramente custeado através de um financiamento coletivo online.
Diante dos argumentos apresentados pelo grupo, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos aceitou analisar a queixa dos jovens, optando também por conferir status prioritário, o que acelera a tramitação.
“Desde que nós começamos [com o processo], sentimos o impacto da crise climática cada vez pior. Em 2023, julho foi o mês mais quente já registrado. É assustador pensar que isso é apenas o começo”, disse Catarina dos Santos Mota, 23, uma das autoras da ação, em conversa com jornalistas.
Natural de Leiria, uma das regiões mais afetadas pelos grandes incêndios florestais de Portugal, a jovem diz que sente progressivamente que sua casa vem se tornando “um lugar mais hostil”.
A ideia de se unir para cobrar as ações legais dos governos nasceu precisamente após os jovens vivenciarem pessoalmente os efeitos nocivos de ondas de calor e de grandes fogos nas florestas perto de casa.
Portugal, assim como outros países no sul da Europa, enfrenta anualmente grandes incêndios nos períodos mais quentes do ano. Em 2017, as chamas fizeram mais de cem mortos e destruíram grandes áreas de vegetação e muitas propriedades.
Além de citarem problemas de saúde relacionados ao fogo, os jovens listam uma longa lista de efeitos nocivos que eles já enfrentam por conta do aquecimento global, que vão desde dificuldades de aproveitar os espaços ao ar livre até a ansiedade provocada pela crise climática.
“Não é apenas a nossa saúde física que está sendo afetada. A crise climática também afeta a nossa saúde mental, porque nos deixa preocupados com o nosso futuro. Como nós podemos não ter medo?”, questionou André dos Santos Oliveira, 15, que também integra a ação.
Na próxima semana, na sede do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em Estrasburgo, na França, o grupo e seus representantes legais irão expor seus argumentos para 17 juízes da corte.
As equipes jurídicas das 32 nações processadas também irão apresentar a defesa e os argumentos contra as alegações dos jovens. Depois, a corte vai então analisar o que foi apresentado.
“Achamos que a decisão pode surgir entre 9 e 18 meses, mas não temos certeza”, diz o advogado Gearóid Ó Cuinn, que destaca que o resultado pode representar a tomada de decisões concretas contra o aquecimento global.
Além de buscar reduzir os gases-estufa dentro das fronteiras europeias, o grupo também quer agir sobre a poluição ligada ao que acontece fora do continente. Isso incluiria, entre outras coisas, a imposição de limitações para a importação de bens produzidos em contextos de emissão intensiva de carbono.
Para atingir esse objetivo, a equipe jurídica se embasa em uma série de argumentos científicos que mostram a dimensão da crise climática e a necessidade de limitar o aumento global de temperaturas para conter seus efeitos mais nocivos.
Nos últimos anos, em meio ao pouco progresso obtido pelos acordos internacionais para limitar emissões, ambientalistas têm recorrido cada vez mais aos tribunais para pressionar por mudanças.
Um estudo da London School of Economics, liderado pela pesquisadora brasileira Joana Setzer em parceria com Catherine Higham, revelou um aumento da chamada litigância climática.
Publicado no ano passado, o relatório identificou 2.002 casos de litígio climático desde 1986. O número de processos do tipo dobrou desde 2015. Cerca de 20% do total de ações foram apresentadas de 2020 a 2022.
“Os litígios climáticos tornaram-se um instrumento utilizado para fazer cumprir ou reforçar os compromissos climáticos assumidos pelos governos”, reforça o relatório.
Os processos são heterogêneos e miram não apenas governos nacionais e regionais, mas também empresas e outras entidades. Empresas de petróleo e do setor de gás estão entre os alvos mais frequentes.
Em uma das ações mais recentes do gênero, apresentada na primeira semana de setembro, o estado da Califórnia processou cinco das maiores empresas petrolíferas do mundo: Exxon Mobil, Shell, BP, ConocoPhillips e Chevron.
As empresas são acusadas de causarem prejuízo de milhões de dólares, além de terem agido para enganar o público para minimizar os riscos relacionados ao aquecimento global.
Dezenas de municípios e pelo menos sete estados dos EUA também têm ações similares contra gigantes do setor de petróleo e gás.
Outro caso que chama a atenção nos EUA é o de jovens de Montana que processaram a administração estadual por não avaliar os riscos de mudanças climáticas. Em agosto, a Justiça decidiu a favor dos jovens, fazendo desta a primeira ação do tipo julgada no país.
Ainda em agosto, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança afirmou, de maneira inédita, que todas as crianças têm direito a um meio ambiente limpo e saudável. O entendimento aponta que os países têm obrigação de lutar contra as mudanças climáticas e, por isso, deve reforçar a litigância climática.
Na Europa, também já houve algumas decisões favoráveis aos ambientalistas. Um dos casos mais emblemáticos aconteceu em 2019, quando a Suprema Corte da Holanda decidiu que era dever nacional reduzir as emissões de carbono de forma mais acelerada. A determinação paraçou o governo a anunciar metas mais ambiciosas e planos para diminuir as emissões.
Outro caso midiático envolve o Brasil e a ativista Greta Thunberg. A ambientalista sueca integra um grupo de 16 jovens que entrou com uma queixa na ONU (Organização das Nações Unidas) contra Brasil, Alemanha, Argentina, França e Turquia.
Os países, que estão entre os maiores poluidores do mundo, são acusados de violarem os direitos infantis no âmbito da Convenção dos Direitos da Criança, assinada há três décadas.
Fonte: Folha SP.
Foto: Robin Loznak – 13.jun.2023/Our Children’s Trust/AFP.