É fato. Toda tragédia ou desastre, como a atual calamidade no Rio Grande do Sul, que chega a mobilizar a sociedade e unir as atenções, trará sempre consigo uma realidade alternativa, paralela, criada por redes de desinformação que acharão sempre uma maneira de se beneficiar com o caos. Vivemos em um ambiente informativo altamente concentrado, privatizado e sem regras, um faroeste digital, em que as mentiras se espalham sete vezes mais que as verdades porque plataformas e mentirosos lucram juntos.
Em meio à tragédia climática que atinge o Rio Grande do Sul desde o final de abril, multiplicam-se nas redes sociais vídeos de antenas e rastros de motores de avião. “O que está rolando definitivamente não é natural. Vamos abrir os olhos!”, clama uma usuária no X (antigo Twitter).
Para ela, a catástrofe, que já matou mais de cem pessoas e afetou quase dois milhões, é resultado de um ataque causado pelo Haarp (High-frequency Active Auroral Research Program) — um projeto de estudo da ionosfera através de antenas localizadas no Alasca, nos Estados Unidos.
Outros usuários filmam aeronaves que cruzam o céu gaúcho, identificando a fumaça deixada pelos veículos como o verdadeiro motivo das fortes chuvas.
Os conteúdos convergem em uma teoria conspiratória que nega explicitamente as mudanças climáticas e culpabiliza governos e instituições científicas por, supostamente, orquestrarem “tragédias planejadas”.
As postagens, com centenas de milhares de interações nas redes sociais, ignoram o já estabelecido consenso científico acerca das causas da catástrofe e sua forte ligação com o aquecimento global e investem na teoria de que as mudanças climáticas e o aquecimento global são uma “farsa”.
Mas, ao contrário do que defendem os negacionistas, especialistas no assunto e estudos realizados pela empresa de meteorologia MetSul confirmam a relação de alguns dos eventos extremos recentes com o aquecimento do planeta.
Causas bem definidas
Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT), explica que a situação no Rio Grande do Sul tem causas bem definidas: um sistema de baixa pressão, ao ser bloqueado por outro, de alta pressão, no Centro-Oeste e Sudeste do país, fez com que as frentes frias ficassem estacionadas na região, causando chuvas históricas alimentadas por um fluxo de vapor d’água vindo da Amazônia.
Segundo ele, a situação é intensificada pelo aquecimento global. “A atmosfera mais quente armazena muito mais vapor d’água, o que alimenta episódios mais frequentes e intensos de chuvas que geram desastres como este”, explicou.
Como explicou o Estadão, o Rio Grande do Sul é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio. Isso faz com que o Estado tenha particularidades que facilitam a ocorrência de fenômenos climáticos. No entanto, especialistas indicam que o El Niño e as mudanças climáticas, provocadas pelo aquecimento global, potencializam o problema.
Dados históricos conseguem demonstrar o agravamento dos efeitos das mudanças climáticas em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Cálculos do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram como o número de dias com extremos de precipitação (acima de 50 milímetros) aumentaram na cidade a cada década desde 1961.
Em entrevista ao Estadão, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rodrigo Paiva ressaltou que existe um consenso na comunidade científica internacional sobre a interferência do aquecimento do planeta no aceleramento do ciclo hidrológico. É por esse motivo que existem chuvas mais intensas em alguns lugares e secas maiores em outros.
O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. O especialista entende que os fenômenos climáticos extremos ficarão cada vez mais intensos, frequentes e imprevisíveis.
Esse é também o consenso no governo. Em discurso em 8 de maio, o presidente Lula (PT) declarou que o desastre servia como uma “cobrança” do planeta para todos. Postura que vai na contramão de seu antecessor, Jair Bolsonaro, cujo governo ficou conhecido pela negação da crise climática.
Uma pesquisa Quaest divulgada em 9 de maio mostrou que 99% dos entrevistados acreditavam que as mudanças climáticas estavam pelo menos um pouco relacionadas aos eventos no território gaúcho.
“Sem sentido físico”
Apesar disso, narrativas conspiratórias que antes não encontravam ressonância no ambiente digital brasileiro podem ter achado uma porta de entrada em meio ao desastre.
Os usuários repetem conspirações compartilhadas — e desmentidas — há anos nos Estados Unidos, como a teoria dos “chemtrails”, ou “rastros químicos”, junto a descontextualizações sobre o projeto Haarp.
Eles defendem que o governo utiliza aviões para espalhar na atmosfera substâncias químicas que, por sua vez, seriam ativadas por antenas potentes no Alasca, supostamente alterando o clima e provocando desastres naturais.
As alegações sobre os “chemtrails” ignoram processos já explicados: os motores das aeronaves deixam rastros de condensação do vapor d’água presente na atmosfera, além de liberarem fuligem e poluentes, o que justifica as nuvens.
Já as antenas no Alasca, ou Haarp fazem referência ao projeto High Frequency Active Auroral Research Program, da Universidade de Alaska Fairbanks. O programa estuda a ionosfera através da transmissão de frequências de até 3.6MW, com efeitos curtos e, segundo a instituição, sem a habilidade de manipular o clima.
Assim como inúmeros meteorologistas e climatologistas contatados pela AFP ao longo dos anos, Carlos Nobre classificou a teoria sobre o Haarp como “absolutamente sem sentido físico”.
“Não há qualquer maneira de um instrumento na ionosfera tornar eventos meteorológicos mais extremos”, assim como “não poderia alterar nem mesmo o clima do Alasca”.
Uma postagem no X com mais de 372,9 mil visualizações na rede social apontou ainda que o show da cantora Madonna, no sábado, 4, “foi parte de um ritual ocultista realizado em meio à calamidade climática planejada que assola o Rio Grande do Sul”.
O fio que conspira sobre a apresentação da cantora não esclarece, no entanto, que o evento no Brasil havia sido anunciado em março. A apresentação faz parte de uma turnê que começou em outubro de 2023, em Londres, e contou com 81 shows. O espetáculo em Copacabana seguiu o mesmo roteiro que as outras performances de Madonna na turnê. Ou seja: nenhuma relação com o Rio Grande do Sul.
Explicação para algo que assusta
Raquel Recuero, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais da Universidade Federal de Pelotas, explica que esse tipo de material é importado por grupos organizados, “provavelmente em busca de audiência, monetização e influência”.
O conteúdo cresce por oferecer uma explicação para um fenômeno que assusta, apontou a pesquisadora, conseguindo se enraizar na cultura “porque mistura seu discurso com outros elementos que já importam para as pessoas”, como o “discurso político e religioso”.
Assim, apesar de as teorias reforçarem crenças conservadoras e extremistas, Recuero afirma que não é possível relacioná-las a um movimento político singular.
Em jogo, segundo ela, está a confiança nos pilares democráticos, minada por ataques às instituições, às autoridades governamentais e científicas e à imprensa, taxadas de ocultadoras da verdade.
Por isso, o principal desafio seria a conscientização das pessoas “para que consigam entender o que é verdadeiro e o que é falso”.
Fonte: Folha SP, Estadão, Agência Pública
Foto: Nelson Almeida.