Um novo tipo de ambiente marinho

Duas descobertas recentes mostram que o mar brasileiro, embora ameaçado pela poluição, pesca predatória, mineração e exploração de petróleo, ainda tem muito a revelar.

No topo de montanhas submarinas perto do Espírito Santo, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) encontraram um novo tipo de recife, formando montes salpicados de vermelho, laranja e amarelo a perder de vista, com alta concentração de peixes grandes.

Em São Paulo, numa região profunda chamada talude continental, outro grupo do Instituto Oceanográfico da USP descobriu uma espécie rara de peixe, coletada a cerca de 800 metros (m) de profundidade, onde a luz praticamente não chega.

“Ainda existe muito a descobrir, tanto em regiões distantes como nas não tão distantes do mar, o que aumenta a nossa responsabilidade com o uso que fazemos do oceano”, assinala a oceanógrafa Beatrice Padovani Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco, que não participou das pesquisas.

É o caso do monte Davis, submerso no meio da cadeia montanhosa Vitória-Trindade, que se estende perpendicularmente por mil quilômetros (km) no litoral do Espírito Santo. De acordo com estudos anteriores, o topo seria um extenso campo de rodolitos – aglomerados redondos formados por algas calcárias. Mas foi lá que, em setembro de 2011, o biólogo Hudson Tercio Pinheiro, do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da USP, teve uma surpresa ao mergulhar e observar com atenção o topo da montanha, a 70 m de profundidade.

O pesquisador se viu diante de um tipo inesperado de recife, formado por serras de até 50 m crescendo a partir da base. Ao redor dos morros havia uma grande diversidade de peixes, com muitos tubarões e outros grandes predadores, como o mero (Epinephelus itajara), com até 1,5 m de comprimento, que se esconde entre os recifes.

A área constitui um novo tipo de ambiente marinho, chamada de colinas coralinas, em razão das algas calcárias que formam os recifes, e descreveu em artigo publicado em maio de 2022 na revista científica Coral Reefs. Outros recifes, como os costeiros, também costumam ser construídos por corais, algas e briozoários, organismos marinhos de esqueleto calcário que vivem fixos ao fundo em águas rasas.

Com a ajuda de pescadores

Ao comparar as colinas com ambientes semelhantes, os pesquisadores da USP e da Ufes verificaram que a quantidade de grandes peixes predadores era 45% maior do que em áreas marinhas protegidas no Caribe, no México e em outros pontos do litoral brasileiro. Os tubarões-lixa (Ginglymostoma cirratum), uma espécie ameaçada no país, eram 14 vezes mais numerosos nas colinas coralinas do que na ilha de Trindade, no final da cadeia, um dos poucos lugares da costa brasileira em que vivem em abundância.

“Além do isolamento geográfico, que favorece a formação de novas espécies, a riqueza biológica nesses corais resulta da abundância de nutrientes trazidos pelas correntes marinhas profundas, que sobem quando encontram a base das montanhas, nas profundezas, a quase 4 mil metros de profundidade”, diz Pinheiro. Para ele e outros pesquisadores, a correnteza, ao bater nos recifes, forma redemoinhos que aprisionam o plâncton, organismos microscópicos suspensos na água que servem de alimento para pequenos peixes, dos quais os maiores se alimentam.

Os pesquisadores descobriram as colinas conversando com seus antigos vizinhos pescadores em Vitória, que indicaram os melhores lugares para mergulhar e ver muitos peixes. Apesar das descobertas, os pesquisadores chamaram a atenção para a fragilidade desse ambiente desconhecido. De 2009 a 2011, uma empresa de mineração danificou parte do ambiente para extrair calcário, usado como fertilizante. A atividade representa uma das ameaças a esses montes submarinos, juntamente com a pesca ilegal.

Nova espécie de mar profundo

Em setembro de 2019, durante uma viagem com o Alpha Crucis para coleta de peixes até 1,5 mil m de profundidade, os pesquisadores coletaram dois exemplares de um raro grupo de peixes, conhecidos como brótula-vivípara. Batizada de Sciadonus  alphacrucis, a espécie tem corpo alongado como uma enguia, nadadeiras pequenas, olhos reduzidos e corpo translúcido e sem pigmentação.

Também chamou a atenção dos pesquisadores a grande quantidade de lixo trazido pelas redes com os peixes de grandes profundidades. “Apesar de ser uma região praticamente inacessível, encontramos latas metálicas de comida, bebida e aditivos de óleo de navio, sacolas, embalagens e até brinquedos de plástico, placas de tinta catalisada e blocos de concreto”, descreve Melo. “Esse material pode ter sido despejado por barcos, navios ou plataformas de petróleo que utilizam a região ou transportado por correntes marinhas a partir de regiões mais rasas.”

Extensão da plataforma continental

Conhecer o ambiente marinho poderia ajudar não só a criar áreas de manejo e conservação ambiental, mas também a garantir a soberania brasileira sobre determinadas áreas. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) estabelece o limite de 200 milhas (cerca de 320 km) a partir da linha de costa como zona econômica exclusiva do país. Quando a plataforma continental é mais extensa ou existem ilhas ou cadeias de montanhas, os países podem obter uma extensão jurídica da plataforma continental, garantindo a exclusividade no uso do solo e do subsolo marinho.

Por essa razão, o Brasil pleiteia junto à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da CNUDM que a região próxima à cadeia de Vitória-Trindade seja considerada uma extensão da plataforma continental. Um dos critérios para aprovação é que haja conhecimento sobre a geologia, a biodiversidade e a ecologia da região. “Países com mais estudos científicos têm mais condições de preservar os ambientes, avaliar os impactos da exploração econômica e, dessa forma, sustentar seus pleitos diante dos demais membros da CNUDM”, comenta Moura.

Fonte: Fapesp Pesquisa.

Foto: Luiz A. Rocha.