11 de setembro é o Dia do Cerrado e não há nada para comemorar.

Dia do Cerrado é como um aniversário em um quarto de UTI, festejando o paciente desenganado, entubado e em coma induzido. Misto de hipocrisia e ingenuidade excruciante em meio a baboseiras coloridas.

O Cerrado está em franco processo de desaparecimento. Alarmes são dados há tempos. Os sinais eram claros, os indicadores quantitativos – disponíveis há anos – eram inequívocos. A conservação estava perdendo, vexatoriamente, a luta pelo Cerrado. Mas a sociedade brasileira não se comoveu e, agora, assistimos o processo contínuo e irreversível do solapamento do que resta do bioma Cerrado.

Praticamente restrito aos limites do território brasileiro, com alguma extensão na Bolívia e no Paraguai, o Cerrado combina elevada biodiversidade, uma relevante participação de organismos únicos e a marcha inexorável de um modelo de ocupação avidamente sequioso, obcecado por arrolar terras em ritmo galopante.

Por ser a savana mais quente e úmida do planeta, o Cerrado é também a mais biodiversa e heterogênea savana, apresentando diferenças regionais, refletindo sua vizinhança com outros biomas, a sua altitude, a sua latitude e a presença de grandes rios. Devido à expressiva pluviosidade do Cerrado, sua extensão, sua vegetação e sua história geológica, o bioma recebeu a alcunha de “berço das águas do Brasil”, refletindo a riqueza das nascentes, dos rios e dos aquíferos que aqui estão e que dependem dessa complexa paisagem para sua manutenção.

São centenas de bacias hidrográficas, mais de uma dezena de milhares de espécies de plantas, milhares de vertebrados, incontáveis invertebrados. Um enorme potencial biotecnológico se oculta na biodiversidade do Cerrado, onde investimentos em pesquisas poderiam tornar esse potencial uma realidade para a sociedade e para que outros modelos de desenvolvimento para o Bioma (e para o país).

O que acontece hoje no Cerrado com a soja, com o algodão, com o milho, com o boi e com a cana-de-açúcar reflete a história recente da Mata Atlântica, o bioma mais devastado do Brasil, com o café, a cana-de-açúcar e com o boi.

Segundo a plataforma do MapBiomas, resta hoje uns 30% da Mata Atlântica e menos de 50% do Cerrado. No entanto, na Mata Atlântica há regiões montanhosas, que não permitem a mecanização e limitam a ocupação, além de áreas de manguezais e estuários. No Cerrado temos pouquíssimas áreas onde o relevo efetivamente impede a sua ocupação e a sociedade só pensa em “fronteira agrícola” quando escuta “Cerrado”. O fato é que o potencial de ocupação, de destruição e de fragmentação do Cerrado é bem maior que o observado na Mata Atlântica, onde também há muitas áreas em regeneração recente. Não é difícil projetar um futuro no qual o Cerrado restará apenas nas poucas Unidades de Conservação de Proteção Integral que possui.

O fato é que já perdemos a oportunidade histórica de proteger de forma minimamente responsável o Cerrado, sua biodiversidade, seus serviços ecossistêmicos e seu potencial biotecnológico para a sociedade. E, falando objetivamente, não há proteção responsável do Cerrado sem o estabelecimento de uma rede ampla de Unidades de Conservação de Proteção Integral, as únicas categorias de proteção que efetivamente evitam o desmatamento no bioma e são, reconhecidamente, as ferramentas mais efetivas na proteção da biodiversidade.

Praticamente todas as ações que hoje vemos para o bioma são parte de uma triste festa, onde os desenganados sabem se tratar de uma despedida, enquanto os otimistas crônicos sonham com efemérides de significados esvaziados.

Embora os primeiros Parques Nacionais do Cerrado tenham sido criados nos anos 60, apenas em 1998 ocorreu o primeiro exercício para identificar áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade do Cerrado e Pantanal.

Essas áreas prioritárias seriam os locais para a criação de novas Unidades de Conservação de Proteção Integral. Era o momento para investir fortemente na criação de uma ampla rede de Unidades de Proteção Integral. Havia esperança. Fugidia, mas havia.

No entanto, concomitantemente a esses exercícios, ocorreu forte avanço do desmatamento do Cerrado, onde taxas anuais de desmatamento acima de 1% do bioma não eram raras. Uma taxa de desmatamento por volta de 1% representa, em território, a eliminação de aproximadamente quatro Distritos Federais de Cerrado por ano ou cerca de 10 mil hectares/dia (um hectare equivale, grosso modo, a 1,5 campo de futebol).

O desmatamento no Cerrado não tem diminuído ao longo do tempo. Na verdade, tem acelerado rapidamente. Taxas recentes de desmatamento no Cerrado estão alcançando 2% do bioma ao ano.

Diferentemente da Amazônia, onde há vastas áreas de terras devolutas ou pertencentes à União, a grande maioria das terras do Cerrado já foram destinadas, principalmente para a iniciativa privada. Com isso, o combate ao desmatamento na Amazônia é bem mais simples, visto que muito desse desmate não é autorizado e ocorre em áreas invadidas.

No Cerrado, por outro lado, são desmatamentos que ocorrem no interior de propriedades privadas, onde a maioria é autorizada pelos órgãos estaduais de meio ambiente dos Estados. Os proprietários têm o direito de desmatar suas propriedades dentro do que prevê o Código Florestal, o qual foi profundamente modificado em 2012, favorecendo ainda mais o desmatamento nas propriedades.

Com isso, não há surpresa alguma nos resultados positivos da fiscalização contra o desmatamento na Amazônia no atual governo. Por outro lado, também não há surpresa alguma na incapacidade em frear o desmatamento corrente no Cerrado. Proprietários divulgaram a informação de que haveria uma “moratória da soja”, onde seriam proibidos de desmatar. Daí a pressa na “supressão vegetal”. Fake News contra o Cerrado.

Podemos pensar então nos proprietários de terra que valorizam a natureza. Certamente são muitos, correto? Poderíamos investir em fortes campanhas visando a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), criadas com objetivos de compensação, turismo na natureza, contemplação, pesquisa, pagamento por serviços ecossistêmicos, dentre outros.

No entanto, mesmo com décadas desde a criação da primeira RPPN no Cerrado, as quase 300 reservas existentes hoje protegem menos de 190 mil hectares, área menor que o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Se por um lado as RPPN representam um investimento eventualmente oneroso para os proprietários, afinal a terra é cara e as reservas estarão fora das atividades econômicas regulares da propriedade, a quantidade de terras mobilizadas para a conservação nessa categoria ainda é pequena.

As RPPNs  são extremamente relevantes, com diversos papéis de destaque no sistema de áreas protegidas, mas mesmo que dobrem em área nos próximos 10 anos, temo que permaneçam como fragmentos distantes, espalhados na paisagem do Cerrado, ou concentradas nas proximidades imediatas de Unidades de Conservação maiores.

Mas além das queixas sobre custos e dificuldades em criar RPPNs, novamente a oposição ideológica contra a conservação contaminou muitos proprietários e, o número de pedidos para a criação de novas RPPNs diminuiu nos últimos anos.

Todo confete eventualmente lançado no festejo do dia do Cerrado não permanecerá no dia seguinte. São frágeis em forma e conteúdo, com baixa capacidade de evitar mais desmatamentos ou mesmo reverter a tendência de redução das áreas naturais.

A garantia mais efetiva que poderia ter sido tomada para a proteção do Cerrado – a criação de uma rede de Unidades de Conservação de Proteção Integral –, não se tornou realidade no momento histórico correto. Falhamos como sociedade presente e como sociedade futura.

Não é difícil imaginar um cenário para o Cerrado onde apenas uma fração miserável da biodiversidade do bioma resista na limitada proporção de Unidades de Conservação de Proteção de Integral atual. Esse cenário já está desenhado na dinâmica de ocupação e desmatamento do bioma. No entanto, se o pouco mais de 3% do Cerrado nessas Unidades de Conservação parece ridiculamente insuficiente e abusivo, o cenário pode se tornar ainda pior.

Considerando as paraças que hoje se levantam contra o Cerrado, independente do espectro político, não seria surpresa o quase completo desaparecimento do Cerrado nas próximas décadas.

Fonte: ((O))Eco.

Foto: Marcio Sanches/WWF-Brasil.