68% da Câmara vota contra meio ambiente, indígenas e trabalhadores rurais

Enquanto o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeria aproveitar a pandemia para ir “passando a boiada”, pelo menos 351 deputados federais estavam tocando o berrante. Ferramenta exclusiva publicada pela Repórter Brasil revela que 68% da Câmara, ou 2 a cada 3 deputados, são cúmplices do desmonte socioambiental promovido pela gestão atual.

Esses parlamentares apresentaram projetos de lei e votaram mudanças legislativas que prejudicam a fiscalização ambiental, favorecem atividades econômicas predatórias, precarizam a legislação trabalhista, dificultam o acesso a benefícios sociais e travam a reforma agrária, dentre outros retrocessos apontados por organizações socioambientais.

As conclusões fazem parte do Ruralômetro 2022, uma plataforma de dados e consulta sobre a atuação da Câmara dos Deputados, desenvolvida pela Repórter Brasil e que mede a “febre ruralista” dos parlamentares. A ferramenta, que está em sua segunda edição, indica se um deputado federal atua de forma positiva ou negativa para o meio ambiente, trabalhadores do campo, indígenas e outros povos tradicionais.

Os resultados da análise indicam o avanço da “nova direita” no Legislativo e mostram também o poder em Brasília da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como bancada ruralista, que tem influência hoje sobre dois terços da Câmara num momento em que o Congresso assume as rédeas da agenda política nacional, em sintonia com o Executivo. Na avaliação de especialistas, esse cenário favorece a aprovação de leis antiambientais e contrárias aos direitos sociais e trabalhistas.

“Com a onda bolsonarista de 2018, foi eleito um Congresso muito mais à direita que os anteriores. E ainda temos um governo anti-indígena e antiambiental, que construiu uma base de apoio no Legislativo com o centrão e dá reforço institucional a essa agenda radical e regressiva”, avalia o cientista político Cláudio Couto, professor de gestão pública da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Analistas dizem que a inclinação ruralista da Câmara já era uma realidade. A ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo conta que sempre foi possível aprovar leis protetivas, mesmo diante dessa maioria ruralista.

Para isso, no entanto, pesava o apoio de parte do Executivo. “Mas isso se perdeu, porque o Ministério do Meio Ambiente é hoje o primeiro a apoiar no Congresso a derrubada da proteção ambiental”, diz ela, que trabalhou por 29 anos na Câmara como consultora legislativa de meio ambiente.

“Foi uma tempestade perfeita em desfavor do meio ambiente, a pior legislatura desde a redemocratização”, avalia Raul Valle, diretor de Justiça Socioambiental da WWF Brasil.

Entre os retrocessos aprovados pela Câmara desde 2019, Kenzo Jucá, assessor legislativo do ISA (Instituto Socioambiental), aponta três projetos do chamado “pacote da destruição”. Trata-se do PL 6.299/2002, ou “PL do Veneno” (que libera o uso de agrotóxicos, incluindo os comprovadamente cancerígenos, sem necessidade de aprovação da Anvisa), do PL 2633/2020, conhecido como “PL da Grilagem” (que afrouxa a fiscalização fundiária e facilita a grilagem de terras públicas), e do PL 3729/2004, ou Lei Geral do Licenciamento Ambiental (que elimina o licenciamento em alguns casos, cria o autolicenciamento em outros e enfraquece o papel das agências ambientais). As três medidas, que fazem parte da base de dados do Ruralômetro, estão em análise no Senado.

Única parlamentar indígena no Congresso em mais de 30 anos, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR, 36,6° C) avalia que, com o reforço da base ruralista, os ambientalistas têm sido obrigados a atuar na defensiva, sem muito espaço para avançar com propostas. “A gente tem feito o possível para não desmontar totalmente os poucos direitos dos povos indígenas.”

Os reis do rodeio

Em meio à tempestade perfeita, quem mais se destacou com propostas e votos considerados antiambientais e anti-indígenas foram deputados homens, eleitos por estados da Amazônia Legal e da região Sul, além de representantes da “nova direita”.

Para Raul Valle, a ascensão dos “ruralistas-bolsonaristas” está “baixando a régua para os ruralistas tradicionais”, que agora parecem até moderados. “Os ruralistas tradicionais nunca acreditaram que poderiam ser tão veementemente contrários a uma pauta querida pela população como é a ambiental, então sempre buscaram ser mais moderados. Mas agora, propostas que antes sequer eram imagináveis, porque contrariam o bom-senso e a opinião pública, ganharam paraça.”

O diretor de Justiça Socioambiental da WWF Brasil avalia que a tendência é que uma parte considerável da bancada ruralista tradicional acabe por radicalizar o discurso, para disputar eleitores com os representantes da nova direita.

Em sua primeira legislatura, estreando com oito deputados, o Novo foi a legenda pior avaliada no Ruralômetro (39,3° C, em média). “Eu tinha esperança de que o Novo pudesse se tornar aliado da questão ambiental, trazendo novas perspectivas, como faz a direita europeia. Mas a bancada deles se alinhou com o governo e com a visão de que as regras ambientais atrapalham os negócios, mostrando que ainda falta muito para o liberalismo brasileiro incorporar a pauta ambiental”, analisa Valle. Procurado, o Novo não respondeu até a publicação desta reportagem.

Embora seja uma epidemia na direita brasileira, a “febre ruralista” atinge também deputados de legendas de esquerda, como Flávio Nogueira (PT-PI, 37,9° C). Em 2021, quando era filiado ao PDT, o parlamentar votou a favor do “PL da Grilagem”. Procurado, o deputado não comentou.

“É surpreendente notar que, da direita à esquerda, há parlamentares que atingiram esses segmentos. Mas, à medida que os partidos chegam no extremo da direita, fica maior a temperatura dos deputados, como o PP, o Republicanos e o PL, que é hoje o partido da extrema-direita no Brasil”, diz a cientista política Maria do Socorro Braga, professora da Ufscar.

Congresso empoderado

A atuação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL, 38,2° C), é crucial para entender o avanço das pautas antiambientais, segundo os especialistas. Os projetos do “pacote da destruição” foram votados principalmente em sua gestão, iniciada em fevereiro de 2021. Aliado de Bolsonaro, Lira tem buscado articular a aprovação de projetos de interesse do Executivo.

Seu antecessor, Rodrigo Maia (PSDB-RJ, 37,3°C), por outro lado, mostrou-se mais aberto ao diálogo com a oposição e impediu alguns retrocessos ambientais, avalia Raul Valle, da WWF. Na esfera trabalhista, porém, a era Maia foi marcada pela perda de direitos sociais, com a aprovação da Reforma da Previdência, do “Contrato Verde Amarelo” e da “MP da Liberdade Econômica”, dentre outros, também incluídos na avaliação do Ruralômetro.

Além de ditar o ritmo da agenda política, este Congresso consolidou seu poder com o “orçamento secreto”, que permitiu a parlamentares aliados de Bolsonaro e de Lira terem preferência no envio de recursos federais para obras em suas bases eleitorais.

Com mais poder nas mãos do centrão, independentemente de quem ganhar a eleição presidencial, os ruralistas devem continuar crescendo na Câmara, ainda que não na mesma velocidade de 2018, avaliam os especialistas.

Fonte: Reporte Rural, UOL.