A perigosa mudança que pode transformar Antártida de ‘geladeira’ em ‘aquecedor’ do planeta

Peritos afirmam que diminuição da superfície do continente gelado ainda não é irreversível, mas pode sê-lo em breve e está a acelerar com o aquecimento global

É uma das principais conclusões, propícia a uma dupla leitura, do relatório publicado quinta-feira, 7,  pelo Instituto de Potsdam para a Pesquisa sobre o Impacto das Alterações Climáticas, na Alemanha.

Os números são alarmantes para a maior superfície gelada do planeta: com recordes de temperatura registados nos quatro cantos do mundo, houve 2,7 milhões de quilómetros quadrados de gelo marinho perdido na Antártida, em comparação com as estimativas dos peritos para esta época do ano.

Norman Ratcliffe do British Antarctic Survey: “É mais ou menos o mesmo que dez vezes a área do Reino Unido. É uma enorme anomalia negativa no gelo marinho, que nunca tínhamos visto a esta escala no período que monitorizámos nos últimos 45 anos.”

A perda dramática na superfície gelada está nomeadamente a afetar a reprodução das espécies locais, como o pinguim imperador.

O relatório diz que a situação ainda não é irreversível, mas que podemos atingir o ponto de não retorno mais cedo do que o esperado.

A alcançar nível bem inferior a qualquer medição prévia existente, segundo dados de satélite. Isso está causando alarme em cientistas que viam a região como resistente ao aquecimento global.

“(Os níveis) estão muito distantes de tudo o que já vimos, é quase de arrepiar”, diz Walter Meier, que monitora gelo marítimo no Centro de Dados de Neve e Gelo dos EUA.

A instabilidade na Antártida pode ter amplas consequências, segundo especialistas no ecossistema polar.

O enorme bloco de gelo antártico ajuda a regular a temperatura do planeta, já que a superfície branca reflete a energia do sol de volta à atmosfera e resfria a água abaixo e ao redor.

Com a redução desse bloco de gelo, a Antártida pode se transformar de “geladeira da Terra” em “aquecedor” do planeta.

O gelo que flutua na superfície do Oceano Antártico hoje mede menos de 17 milhões de quilômetros quadrados. Isso é 1,5 milhão a menos de gelo marítimo do que a média histórica do mês de setembro, e bem inferior aos níveis mais baixos mensurados no período de inverno na região.

Meier não está otimista de que essa perda será recuperada significativamente.

Cientistas ainda tentam identificar todos os fatores que levam às baixas recordes, mas estudar tendências na Antártida sempre foi um desafio.

Em um ano em que vários recordes de alta de temperatura terrestre e oceânica foram quebrados, cientistas insistem em que é preciso prestar atenção ao que acontece no Polo Sul do planeta.

“Vemos o quanto é (uma região) vulnerável”, diz Robbie Mallet, da Universidade de Manitoba e que está atualmente baseado na península antártica.

Ele diz que o gelo marítimo fino observado neste ano dificultou ainda mais os trabalhos de campo. “Há o risco de que (o gelo) se rompa e flutue pelo mar conosco por cima”, Mallet explica.

O gelo marítimo se forma durante o inverno antártico (de março a outubro), antes de derreter em grande parte durante o verão, e pertence a um sistema interconectado que também engloba icebergs, gelo terrestre e enormes plataformas de gelo – que são extensões flutuantes próximas à costa.

O gelo marítimo age como uma camada protetora que previne o aquecimento excessivo do oceano.

Caroline Holmes, do projeto British Antarctic Survey, explica que o impacto do encolhimento dessa camada pode se tornar evidente na transição para o verão -quando pode potencialmente ocorrer um derretimento ininterrupto.

O motivo é que, à medida que mais gelo marítimo desaparece, áreas escuras do oceano serão expostas, absorvendo calor do sol em vez de refeti-lo. Isso fará com que mais calor seja incorporado à água, o que por sua vez provocará mais derretimento de gelo.

É esse ciclo que pode adicionar ainda mais calor ao planeta, interrompendo o papel típico da Antártida de reguladora de temperaturas globais.

“Será que estamos acordando o gigante da Antártida?”, questiona o professor Martin Siegert, especialista glacial da Universidade de Exeter (Reino Unido). Seria, segundo ele, “um desastre absoluto” para o mundo.

Desde os anos 1990, a perda de gelo terrestre na Antártida já contribuiu para um aumento de 7,2 mm nos níveis dos mares. E mesmo pequenos incrementos produzem enormes tempestades que podem varrer comunidades costeiras. Ou seja, o derretimento do gelo marítimo pode, em tese, ser catastrófico para milhões de pessoas ao redor do mundo.

Por ser um continente cercado de água, a Antártida tem um clima e sistema próprios. Até 2016, o gelo da região estava, na verdade, aumentando durante os meses de inverno.

No entanto, uma onda de calor extremo atingiu o continente em março de 2022, deixando as temperaturas na casa de -10°C quando elas deveriam estar por volta de – 50°C.

Nos últimos sete anos, o gelo marítimo baixou a níveis mínimos recordes, incluindo em fevereiro de 2023.

Alguns cientistas acham que isso sinaliza uma mudança fundamental no continente – inclusive nas características que mantinham essa região isolada.

Ao mesmo tempo, esse isolamento também faz com que haja poucas informações históricas sobre a Antártida, chamada por Mallet de “o Velho-Oeste” da ciência.

Por exemplo, os cientistas conhecem a extensão do gelo marítimo, mas não sua grossura. Desvendar esse tipo de informação poderá ser crucial para preparar modelos climáticos da região.

Na base científica de Rothera, Mallet está usando instrumentos de radar para estudar a grossura do gelo e compreender melhor as razões por trás do encolhimento dessa camada. E o calor recorde registrado neste ano provavelmente é um dos fatores, já que dificulta que a água congele por ali.

Pode ter havido também mudanças em correntes oceânicas e nos ventos que moldam a temperatura na Antártida.

Além disso, o fenômeno natural El Niño é outro possível fator envolvido.

De qualquer modo, Mallet diz que existem “muitas, muitas razões para se preocupar”.

“É potencialmente um sinal muito alarmante de mudanças no clima da Antártida que não ocorreram nos últimos 40 anos. E que só estão emergindo agora”.

Martin Siegert, cientista polar: “A menos que queiramos assistir a muito mais destas coisas no futuro, temos mesmo de avançar com a descarbonização. Isso não vai resolver o problema, mas haverá uma adaptação que é absolutamente necessária.”

O relatório indica que o colapso da Antártida pode ser lento, mas com efeitos severos na subida do nível médio das águas no planeta, e alerta que o processo será certamente acelerado com um aquecimento global mais intenso no futuro.

Fonte: BBC News, Euronews.

Foto: Arquivo Pessoal/Robbie Mallet,