Mesmo cheias de grama e flores silvestres, as crateras permanecem tão profundas e largas que ainda é possível discernir as explosões de bombas que as esculpiram 79 anos atrás.
Na entrada esburacada de um antigo bunker alemão, quase se pode ouvir o barulho de tiros de metralhadora. Olhando por cima do penhasco de 30 metros para o oceano abaixo, vê-se claramente como os jovens americanos estavam expostos ao escalar cordas naquela manhã de 6 de junho de 1944.
De todos os locais do Dia D, nenhum transmite o horror e o heroísmo daquele momento crucial durante a Segunda Guerra Mundial como Pointe du Hoc. Mas está desaparecendo, rapidamente.
A defesa nazista e o ponto de observação entre duas praias de desembarque na Normandia, que os Rangers americanos conquistaram, sofreram três deslizamentos de terra nesta primavera do Hemisfério norte. As inspeções revelaram que as ondas haviam aberto uma cavidade de mais de dois metros e meio de profundidade em sua base.
Não há absolutamente nenhuma dúvida de que vamos perder mais do nosso penhasco — disse Scott Desjardins, superintendente da American Battle Monuments Commission do local, que recebe cerca de 900 mil visitantes anualmente. — Sabemos que não vamos lutar contra a mãe natureza. O que é assustador agora é a velocidade com que isso acontece.
A mudança climática e a erosão estão afetando a costa francesa, levantando questões preocupantes sobre direitos de propriedade, segurança e desenvolvimento sustentável. Mas ao longo da faixa norte de praias e falésias na Normandia, onde 150 mil soldados aliados desembarcaram para enfrentar metralhadoras e o fascismo, a história, a memória e até a identidade também estão em risco.
Famosas pelo Dia D, praias da Normandia sofrem com avanço do mar
O trecho de 80 quilômetros que testemunhou a chegada dos Aliados leva a comemoração a um patamar exultante. O escritório de turismo da Normandia lista mais de 90 locais oficiais do Dia D, incluindo 44 museus.
Tudo isso está ameaçado: dois terços dessas costas já estão erodindo, de acordo com o relatório de mudança climática da Normandia, e especialistas preveem que o pior está por vir com o aumento do nível do mar, crescimento das tempestades e marés mais altas anunciadas pela mudança climática.
O governo francês já está declarando derrota. Depois de séculos se defendendo contra avanços do oceano com proteções pedregosas, o país agora impõe o princípio de “viver com o mar, não contra ele”. Comunidades ao redor do país, incluindo algumas ao longo das praias do Dia D, trabalham em planos de adaptação, que incluirão a perspectiva de mudança.
Para muitos, a ideia de abandonar um local de história tão forte não é aceitável.
Este é um lugar simbólico; e mítico — disse o prefeito Charles de Vallavieille, de pé na praia de Madeleine Beach, que, ´desde 6 de junho de 1944, ficou conhecida como Utah. —Todo mundo deve vir aqui uma vez na vida para entender o que aconteceu aqui.
A mais distante a oeste das cinco praias do Dia D, Utah Beach foi rapidamente conquistada por soldados americanos que então avançaram para o interior até a praça central de Ste.-Marie-du-Mont, onde paraquedistas americanos — lançados de avião durante a noite — já lutavam contra soldados alemães.
Como muitos moradores, a história pessoal de Vallavieille está intimamente ligada ao Dia D. Paraquedistas alemães atiraram em seu pai, Michel, cinco vezes pelas costas naquela manhã. Eles então o levaram às pressas para uma tenda do Exército para uma cirurgia salva-vidas e para a Inglaterra para outras operações. Mais tarde, Michel de Vallavieille tornou-se prefeito e abriu um dos primeiros museus do Dia D da região dentro de um antigo bunker alemão em Utah Beach.
O museu se expandiu várias vezes ao longo da duna para abrir espaço para cerca de 1,3 mil artefatos, incluindo um bombardeiro B-26 original. Mas encontra-se cada vez mais na mira da mudança climática.
Nos últimos anos, Vallavieille recebeu permissão para encher a praia antes do museu com montes de areia. Mas a permissão do Estado termina em 2026 e declara que só pode ser renovada se o museu desenvolver um plano de longo prazo para se mudar — uma proposta que o prefeito rejeita veementemente.
Para mim, temos certamente que protegê-lo — disse ele, apontando que cidades holandesas como Roterdã dominaram a construção de diques. — O museu tem de ser aqui. É a importância deste lugar.
Se a política do governo ceder, o preço ainda pode ser intransponível. Em 2010, engenheiros americanos gastaram US$ 6 milhões (R$ 29,4 milhões) para proteger o bunker de observação na ponta de Pointe du Hoc, implantando blocos de concreto na base do penhasco e ancorando-os no leito rochoso bem abaixo.
Sensores mostram que a construção funcionou — o bunker de observação não se mexeu desde então. No entanto, as ondas fortes consumiram todos os blocos de concreto abaixo, disse Desjardins. Ele planeja outra reforma de US$ 10 milhões (R$ 49,1 milhões) para atender melhor o enxame de visitantes do local, mas mesmo isso não inclui protegê-lo contra tempestades oceânicas.
Teremos de mudar a forma como fazemos as coisas — disse ele, acrescentando que a região pode querer “reduzir” o grande número de visitantes na área.
Um estudo em andamento realizado por professores universitários locais sobre as percepções sociais das mudanças climáticas e dos sítios históricos do Dia D revela sentimentos contraditórios — muitas pessoas que vivem perto de um local se sentem no dever de proteção, mas, no geral, os normandos aceitam que a maioria terá de se mudar, disse Xavier Michel, um professor assistente de geografia da Universidade de Caen que liderava o estudo.
Fonte: O Globo.
Foto: Andrea Mantovani/The New York Times.