As árvores e a música brasileira’ mostra como a canção popular foi impactada pela flora

“Tampouco turva-se a lágrima nordestina/Apenas a matéria vida era tão fina/ E éramos olharmo-nos intacta retina/A cajuína cristalina em Teresina”, são versos entoados por um jovem Caetano Veloso na canção Cajuína, composta pelo músico em 1979 para o álbum Cinema Transcendental, que eternizou o fruto do sertão na história da Música Popular Brasileira.

Caetano se equilibra entre a simbologia do fruto, considerada uma figura central quando se fala em regionalismo, e uma poética de segundas intenções – já que o músico baiano joga seus agudos com o dulçor da fruta. Este mel do sertão que embala uma tímida (e sensual) cena entre o eu lírico e o personagem é citado em As árvores e a música brasileira (IPEF), do professor Ricardo Viani, do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais, uma das centenas faixas trazidas pelo pesquisador em seu novo livro.

Araçás, jacarandás, açaís e cajus marcaram composições desde o século passado, quando a letra da canção tinha ressonância maior e ecoava o cotidiano e as memórias de artistas e letristas vindos não só de grandes cidades mas, sobretudo, de regiões rurais. Caso de Caetano, que é do interior da Bahia, Santo Amaro da Purificação. “”Cajuína”, bebida doce e não alcoólica feita da preensão do pseudofruto, é nome de canção de 1979 do baiano Caetano Veloso, que faz referência à comovente conversa regada a cajuína que teve em Teresina‑PI, com o pai de seu falecido amigo Torquato Neto”, escreve Viani.

A proeminência do fruto (e sua raíz, o cajueiro) é um exemplo que mostra como a natureza se espraia pela literatura musicalizada. Viani conta esta história citando desde Soneto de Caju, poema de 1947, de Vinícius de Moraes, que exalta a planta e as suas peculiaridades botânicas, ao rock dos Titãs, com Chegada ao Brasil (Terra à Vista), “canção que destaca que, na chegada dos portugueses ao Brasil, já havia aqui a mangueira (conhecida pelos portugueses) que dava caju, afinal, são árvores da mesma família botânica e aparentadas.”

A voz de uma região

A flora local é um ponto de reflexão de Viani, que mostra como diferentes gêneros da música popular brasileira exploraram particularidades de diferentes biomas. “Há canções falando de árvores em praticamente todos os gêneros musicais. No entanto, é notável o predomínio de alguns gêneros nessa lista, seja porque sua origem tem uma maior conexão com a natureza ou porque estão no ambiente rural, no qual árvores estão mais próximas física e culturalmente das pessoas.”, escreve o professor.

“[Em] várias vertentes regionais da música popular brasileira: a música gaúcha, no Sul do país, a música da região pantaneira, com suas guarânias, chamamés e polcas, a música caipira, no Norte do Paraná e na maior parte das regiões Sudeste e Centro-Oeste, e o forró e seus derivados, no Nordeste e em parte do Norte do Brasil. Baseada no ambiente rural brasileiro, essa música regional é, sem dúvida, a que historicamente mais tem incluído árvores em suas canções.”, pontua, sobre a relação do regionalismo, geografia e música.

Epíteto de fabulação, filosofia, o neologismo “caetanear” se fez presente no processo criativo de músicos e letristas, que incorporaram em suas produções frutos em letras que, consagradas na história fonográfica da canção popular, podem também ser descritas como delirantes. Açaí, hit composto por Djavan em 1982, é um exemplo conhecido que elevou a flora a status pop.

Tão recorrente nos glossários musicais, o fruto caiu nas graças de gerações de artistas – provavelmente inspirados pela “caetaneada” de Djavan. “Citando apenas três dos muitos exemplos que serão notados pelo leitor, esse é o caso do açaí (Euterpe oleracea), palmeira nativa da Amazônia tão bem retratada por músicos do Pará, onde sua polpa é tradicionalmente mais consumida; do cajueiro (Anacardium occidentale), frequentemente citado em composições de músicos do Nordeste”, escreve Viani.

As árvores e a música brasileira discorre sobre a relação da flora e da arte em três momentos. Como explica seu autor: “A primeira [parte do livro] traz canções que falam sobre árvores de um modo geral, sem citar nenhuma espécie. Na segunda são trazidas canções que mencionam concomitantemente diversas árvores nativas e exóticas, sem serem específicas ou destacarem alguma árvore no refrão ou título. Nesta seção, primeiro são trazidas as canções que exaltam uma região específica, seja o Brasil como um todo ou um ou mais de nossos biomas; depois são apresentadas canções que lamentam árvores e florestas exploradas e cortadas, ou que falam de espécies primordialmente exploradas como madeireiras […]”. Já na terceira parte, são destacadas músicas sobre espécies específicas: árvores exóticas e nativas do Brasil.

Viani conta que o livro nasceu a partir da ideia de “retratar 20 a 30 espécies de árvores para as quais as músicas são bem conhecidas.”. Algo que, em pouco tempo, multiplicou frutos. “Esse número foi crescendo ao longo da pesquisa e demonstra que não são só aquelas árvores mais comuns e bem conhecidas da população, como os sempre lembrados ipês e jacarandás, são citadas por nossos compositores.”, destaca.

“O livro traz 125 nomes populares de árvores retratados na música popular brasileira em canções específicas ou citações pontuais. Nessa contagem não entram árvores cuja menção ocorre em canções com citações a múltiplas árvores, trazidas no início do livro. Assim, esse número de nomes populares de árvores citados em canções é provavelmente superior a duas centenas”, escreve Viani, que fez um mapeamento utilizando diversas bases de dados que compilaram faixas desde a Era do Rádio à música popular atual, sem contar as inúmeras fitas que o pesquisador ouviu e, atentando-se ao falar e aos ruídos, transcreveu – produções muitas vezes sem registro escrito, com apenas gravações raras e históricas.

Fonte((O))Eco.

Foto: Karime Xavier/Folhapress.