Os javalis estão entre as espécies mais invasoras do mundo e, no Brasil, podem ser encontrados em todos os biomas. Por onde passam, causam desequilíbrios na biodiversidade e dão prejuízos agrícolas. Foi esse motivo que levou à legalização da sua caça como forma de controle populacional. Porém, um novo estudo indica que a estratégia pode não ser tão benéfica.
Em artigo recém-publicado no periódico One Health, pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em colaboração com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), sugerem que a caça ao javali como medida de diminuir os impactos de suas invasões falhou. Mais do que isso, a perseguição ao animal parece ter causado ainda mais problemas, tanto de ordem ambiental quanto de prejuízos à saúde pública.
Caça aos javalis
Os javalis invasores no Brasil são originados a partir de diferentes graus de cruzamento entre javalis europeus e suínos domésticos. Apesar de já terem se passado quase 10 mil anos desde o início da domesticação dos porcos em geral, ainda não existe uma barreira reprodutiva com o javali. Assim, quando eles cruzam, são capazes de gerar uma prole fértil.
Com temperamento feroz e sem quaisquer predadores na América do Sul (eles são nativos da Ásia e Europa), esses animais foram invadindo cada vez mais regiões, em uma competição desigual com a fauna silvestre pelos recursos naturais.
Por seu grande potencial destrutivo, capaz de devastar as vegetações e plantações locais, os javalis tornaram-se, em 2013, a primeira espécie liberada para caça na história do país. A medida se manteve vigente até agosto deste ano, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) suspendeu preventivamente as novas autorizações de manejo nas modalidades de caça ativa, ceva ou espera.
A normativa que liberou a caça determinava que os caçadores fossem cadastrados e proibia o transporte de animais vivos e o comércio da carne e couro do javali. Entretanto, esse movimento causou frenesi em grupos de caçadores, ocasionando a disparada da caça ilegal nos últimos anos.
Segundo os responsáveis pelo novo estudo, a caça promovida por grupos privados muitas vezes visam intencionalmente apenas indivíduos machos, deixando fêmeas e leitões vivos para dar continuidade à prática. Além das consequências à fauna e flora, a pesquisa também aponta que a contínua expansão da espécie afeta a saúde humana, uma vez que os javalis são reservatórios de várias doenças zoonóticas.
Para os cientistas, a problemática do javali exige uma abordagem de saúde única que avalie não só o impacto, mas o planejamento e monitoramento dos procedimentos. Esse conceito integra a saúde animal, humana e ambiental.
Reservatório de doenças
As zoonoses são doenças causadas por bactérias, parasitas, vírus e fungos que entram em contato com os seres humanos a partir de hospedeiros intermediários. Os javalis se encontram no ciclo de disseminação de muitas dessas enfermidades, como é o caso da febre maculosa.
Essa doença é causada por bactérias do gênero Rickettsia sp., e é transmitida por diferentes espécies de carrapatos. Assim, os javalis não são os responsáveis diretos pela infecção das pessoas, mas participam do ciclo de disseminação da doença quando carregam populações de carrapatos infectados em seus pelos.
“O estudo realizou análises sorológicas e moleculares para a bactéria transmissora da febre maculosa em carrapatos, javalis, cães de caça e seres humanos nas regiões Sul e Centro-Oeste do país”, explica Louise Bach Kmetiuk, primeira autora do artigo, em nota à imprensa. “Os resultados deram conta que atividades humanas, como a de controle populacional de javalis, podem aumentar o risco de exposição a carrapatos e, consequentemente, a ocorrência de doenças transmitidas por eles”.
A pesquisadora suspeita que javalis possam transportar e disseminar os mesmos carrapatos presentes nas capivaras de seus habitats originais para outros ecossistemas. Além de os animais levarem a infecção para áreas não endêmicas, o hábito de caça pode ocasionar o aumento da exposição à febre maculosa.
Na caça, seja por lazer (proibida no Brasil) ou como forma de controle populacional, as pessoas adentram as matas, expondo-se à doença. Muitos desses caçadores também levam consigo cães, outros possíveis hospedeiros para os carrapatos infectados.
Além da febre maculosa, os javalis ainda podem estar associados à transmissão de outras doenças, como a toxoplasmose e a raiva. No caso da primeira enfermidade, os mamíferos podem ser hospedeiros, apresentando cistos de protozoário em sua musculatura e servindo como fonte de infecção da toxoplasmose caso haja consumo da sua carne.
Já em relação à raiva, os especialistas consideram que essa é a zoonose mais ameaçadora que javalis podem espalhar. Ela afeta o sistema nervoso central e tem uma taxa de letalidade de quase 100%. Um estudo anterior identificou que mais de 11% dos javalis no território nacional foram expostos ao agente infeccioso, provavelmente devido ao contato com saliva contaminada de morcegos hematófagos – que se alimentam de sangue – ou pelo consumo de carcaças contaminadas.
“Os javalis expostos à doença podem desempenhar um papel importante no ciclo da raiva silvestre, fornecendo, indiretamente, um suprimento de sangue para morcegos hematófagos. Juntamente causa uma transmissão direta do vírus da raiva para caçadores e cães de caça”, pondera Alexander Welker Biondo, coautor da nova pesquisa.
Os especialistas defendem que a abordagem contemporânea de biossegurança contra espécies exóticas tem levado a um modo militar de pensar “homem versus javali”, estimulando a compra individual de armas e a caça para controle. “A ganância humana e as atividades comerciais guiadas pela caça culminaram na soltura do javali, na fuga intencional e na disseminação em todos os seis biomas brasileiros, incluindo unidades de preservação, terras agrícolas e pastagens de gado”, conclui o artigo.
Fonte: Revista Galileu.
Foto: Nathalie Hausser/CC BY-NC-ND 2.0.