Como animal ‘mais misterioso’ do mundo pode acabar extinto

Este peixe com corpo de serpente, coberto por uma gosma escorregadia, é surpreendentemente ágil e quase impossível de segurar.

Ele passeia discretamente pelas profundezas escuras com sua fama de necrófaga.

A enguia já serviu para cobrar impostos na Inglaterra, alimentou pessoas e animais na Europa e no norte da África e sustentou uma das poucas atividades de pesca comercial em água doce nesta parte do mundo.

Mas o mais intrigante sempre foi a sua origem. Afinal, de onde elas vêm? Esta pergunta é o mistério da enguia, que cativou naturalistas ao longo da história.

Aristóteles, Plínio, Aldrovandi e até Sigmund Freud quebraram a cabeça tentando explicar a simples existência de um animal que parecia não se reproduzir.

Cada um deles apresentou uma proposta, cada qual mais criativa que a anterior, incluindo até a geração espontânea.

O principal avanço para a solução do enigma veio do esforço e empenho do biólogo dinamarquês Johannes Schmidt. Ele viajou nos primeiros anos do século 20 para procurar a origem das enguias europeias.

Pouco antes, no final do século 19, o zoólogo italiano Giovanni Grassi havia descoberto que certos peixes marinhos pequenos e transparentes em forma de folha, conhecidos como Leptocephalus brevirostris, eram, na verdade, formas juvenis da enguia, que hoje chamamos de larvas leptocéfalas.

Ao aproximar-se do litoral europeu, as larvas transformam-se em enguias. Nesta forma, elas penetram nos rios e nos pântanos.

A descoberta de Grassi deixou claro que as enguias vêm do mar. Mas o mar é muito grande.

Primeiramente, imaginou-se que o Mediterrâneo seria o local de reprodução das enguias. Mas Schmidt capturou larvas leptocéfalas no Oceano Atlântico e observou que sua quantidade diminuía ao entrar no Mediterrâneo.

Ele também percebeu que o tamanho das larvas era variável e imaginou que a região de origem das enguias seria aquela onde se encontravam os leptocéfalos menores.

Schmidt dedicou-se então à imensa empreitada de pescar larvas leptocéfalas ao longo e ao largo do Atlântico Norte, registrando a posição e o tamanho de cada uma delas.

Ele sempre procurava as larvas menores e cada vez mais se aproximava de uma região a leste da Flórida, nos Estados Unidos.

Schmidt publicou seu trabalho em 1923 e, desde então, afirmamos que as enguias se reproduzem no mar dos Sargaços. Parece surpreendente, mas o trabalho de Schmidt nos ensina muito pouco sobre a região de reprodução da enguia e sobre a viagem dos peixes até lá.

Ninguém nunca capturou uma enguia adulta (com órgãos reprodutores) no mar, muito menos em volta do mar dos Sargaços. Também não foram encontrados ali seus ovos fecundados.

A grande viagem da enguia

Com os avanços do desenvolvimento tecnológico, diversas equipes instalaram transmissores em enguias próximas a iniciar a viagem, esperando que eles indicassem sua região exata de reprodução.

Foi assim que aprendemos detalhes fascinantes sobre a viagem das enguias. Por exemplo, que elas não comem durante todo o trajeto marítimo, de milhares de quilômetros. Ou que, durante seu nado constante, elas mudam de profundidade entre o dia e noite, com diferenças de mais de mil metros.

Risco crítico de extinção

A enguia enfrenta atualmente um colapso populacional. Desde 1980, sua população foi reduzida em mais de 95%.

Hoje, a enguia é considerada uma espécie em risco crítico de extinção – o maior nível de ameaça. Nossos avós não acreditariam nesta situação.

Na península ibérica, a enguia perdeu 85% do território que ocupava historicamente, devido ao efeito de barreira das represas. E, quando as represas permitem a passagem das enguias rio acima, o resultado pode ser ainda pior, já que a viagem de volta para o mar frequentemente resulta em atravessar turbinas geradoras de eletricidade, com poucas possibilidades de sobrevivência.

A luta para salvar as enguias

O Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES, na sigla em inglês) propôs, em 3 de novembro passado, a proibição completa da pesca da enguia em todos os seus habitats, todos os estágios de vida e para qualquer propósito a partir de 2023.

A avidez dos mercados asiáticos pelo consumo da enguia (após a diminuição das espécies locais) fez com que o comércio ilegal das enguias europeias e americanas, devido às suas enormes margens de lucro e seus canais de distribuição, ficasse mais parecido com o tráfico de drogas do que com uma atividade pesqueira.

A facilidade de transporte das enguias em sacos plásticos permite o desenvolvimento dessa atividade ilegal.

Conhecer o enigma da enguia e acabar de decifrar um dos mistérios mais antigos da história natural é um objetivo importante. Mas muito mais importante do que ele é a própria enguia em si.

Perder a enguia seria perder um animal único, com função própria nos ecossistemas que ela ocupa, além de milhares de anos de fascinação, mistério, sustento e cultura humana.

É importante que isso não aconteça. É preciso tentar evitar sua extinção.

Fonte: BBC News.

Foto: Getty Images.