Boiando sobre o esgoto, retida por um cabo convenientemente longo, lá estava uma pequena rede de pesca. Um funcionário municipal de Baltimore, nos Estados Unidos, inclina a rede suavemente no lodo fétido e retira da superfície seu prêmio tão cobiçado: um preservativo usado.
No final dos anos 1980 (época do auge da epidemia de Aids nos Estados Unidos), uma equipe de especialistas de saúde quis monitorar se as pessoas estavam seguindo as recomendações de praticar sexo seguro. Para isso, eles começaram a contar os preservativos lançados no esgoto, que acabavam nas estações de tratamento. E, no início de 1988, os funcionários estavam encontrando 200 a 400 preservativos todos os dias.
“Claro que não é um trabalho muito agradável, mas é importante”, contou na época à agência de notícias Associated Press um supervisor de monitoramento da Aids da secretaria de saúde local.
Desde então, autoridades de outros países vêm utilizando o mesmo método. Em 2006, trabalhadores dos esgotos de Eswatini (antiga Suazilândia) estimaram que o uso de preservativos havia aumentado em 50% naquele país africano.
Eles observaram que os contraceptivos têm o tamanho exato para obstruir o segundo conjunto de filtros das estações de tratamento, o que permite que eles sejam contados. Zâmbia também observou um grande aumento do uso de preservativos em 2015, quando milhares deles entupiram os esgotos da capital, Lusaka.
O lixo pessoal, mesmo nas suas formas mais repugnantes, é outra fonte de dados sobre uma pessoa. Os resíduos sejam eles lançados ao esgoto, descartados ou reciclados, carregam um mundo de informações sobre as escolhas e comportamentos das pessoas, que muitas vezes não podem ser obtidas de outra forma.
‘Janela para a vida real das pessoas’
As pessoas que se atrevem a examinar os detritos humanos são chamadas de “garbologistas” e seus esforços nos ajudam a entender de tudo, desde a saúde e as escolhas alimentares das pessoas até as ações de regimes políticos cheios de segredos.
Existe uma clareza reconfortante no estudo do lixo, para o antropólogo Thomas Hylland Eriksen, da Universidade de Oslo, na Noruega. “Ele oferece uma janela muito direta e privilegiada para a forma de viver real das pessoas”, afirma ele.
O termo “garbologia” foi criado pelo escritor e ativista americano A. J. Weberman no início dos anos 1970, mas foi o antropólogo William Rathje, também americano, quem levou a garbologia para o terreno científico, poucos anos depois.
Ele também comparou (mediante permissão) o conteúdo das latas de lixo de indivíduos com o que eles informavam em questionários sobre seus hábitos de comida e bebida — e descobriu que as pessoas claramente minimizam a quantidade de alimentos não saudáveis e de álcool que elas consomem.
Nas décadas que se seguiram, a garbologia também viria a ajudar os pesquisadores políticos e historiadores frente à inexistência ou difícil acesso às fontes oficiais de informação.
Lixo histórico
Na década de 1990 e no início dos anos 2000, pesquisadores perceberam que eles poderiam desvendar a história da Revolução Cultural chinesa pesquisando pilhas de resíduos de papel jogadas fora por autoridades ou moradores locais.
Jeremy Brown, historiador da Universidade Simon Fraser, no Canadá, foi um desses pesquisadores. Frustrado pelo acesso limitado que lhe foi concedido aos arquivos oficiais, ele ia todos os fins de semana aos mercados de pulgas de Tianjin, no norte da China, à caça de resmas de documentos descartados e agrupados para venda.
Quando os vendedores dos mercados de pulgas souberam o tipo de coisas que ele estava procurando, eles passaram a procurar em pilhas de lixo. Graças aos esforços desses comerciantes, Brown conseguiu adquirir documentos que demonstravam, por exemplo, como a deportação de pessoas da área urbana para a zona rural havia sido orquestrada pelos governos locais.
“Foi uma grande descoberta que nunca teria sido possível sem os mercados de pulgas, sem essas coisas que estavam a caminho da destruição”, ele conta.
Mais recentemente, a garbologia ajudou outras pessoas que tentavam pesquisar sobre um país ainda mais fechado e enigmático: a Coreia do Norte. Em fevereiro, o jornal inglês The Guardian noticiou que o professor sul-coreano Kang Dong-wan havia recolhido mais de 1,4 mil embalagens de produtos norte-coreanos, levadas pela água ao longo do litoral da Coreia do Sul.
O interessante dessa pesquisa é que as embalagens de doces mais recentes eram coloridas e sofisticadas, indicando mudanças culturais sutis em um país onde a vida diária sofre fortes restrições.
Enquanto isso, o arqueólogo Grzegorz Kiarszys, da Universidade de Szczecin, na Polônia, vasculhou o lixo encontrado em volta de algumas bases táticas abandonadas de armas nucleares soviéticas, esperando encontrar indicações sobre as atividades secretas realizadas no local.
Ele afirma que técnicas remotas, como fotografias aéreas e varreduras a laser, além de imagens públicas de satélites dos anos 1960 e 1970, ajudaram-no a estudar alguns desses locais. Mas foi através da pesquisa do lixo encontrado nas antigas bases que ele conseguiu formar um panorama de como era a vida das pessoas que moravam ali.
Os resíduos são, em grande parte, domésticos. Há muitas lâminas de barbear, batons, máscaras e sacos de leite em pó vazios — além de brinquedos, já que as famílias dos soldados haviam sido destacadas para esses locais. Curiosamente, ele encontrou brinquedos relativamente caros, como peças de Lego, que não eram disponíveis para o público em geral durante a era comunista na Polônia.
“Parece que as autoridades soviéticas tinham algum acesso a moeda estrangeira”, ele conta.
O lixo, embora seja rapidamente esquecido pelos que o produzem, inevitavelmente age como uma expressão um tanto grosseira da sociedade. Leila Papoli-Yazdi, arqueóloga da Universidade Linnaeus, na Suécia, usou a garbologia para melhor compreender a demografia das pessoas que vivem na capital iraniana, Teerã.
Pesquisando o lixo doméstico que é descartado nos cestos colocados nas esquinas da cidade, ela conseguiu detectar diferenças claras entre os diversos bairros. Havia, por exemplo, amplas evidências de uso de drogas nos bairros de renda mais baixa.
Lixo comercial
Paralelamente a esses estudos acadêmicos, a garbologia tornou-se um instrumento atraente para as empresas.
Rastrear as compras das pessoas ficou muito mais fácil com o surgimento dos códigos de barras e cartões de fidelidade, que permitem que os varejistas registrem cada produto vendido.
As compras online oferecem dados ainda mais específicos. Mas, para quem trabalha em marketing, a garbologia também oferece uma interessante visão realista.
Datha Damron-Martinez, professora de marketing aposentada da Universidade Estadual Truman em Missouri, nos Estados Unidos, afirma que, no seu trabalho como consultora, ocasionalmente ela costumava propor o uso da garbologia como forma de pesquisa de observação para empresas que quisessem conhecer mais sobre as tendências de consumo de uma população alvo.
Mas vasculhar o lixo tentando conseguir uma vantagem competitiva no mercado nem sempre é uma boa estratégia. Em 2001, a multinacional Procter & Gamble (P&G) suspendeu um projeto de “mergulho no lixo” que pretendia conseguir informações sobre a Unilever, sua concorrente no setor de produtos para os cabelos.
Embora a P&G insistisse em afirmar que não havia desrespeitado nenhuma lei, a empresa admitiu que a atividade estava “fora da nossa política rigorosa de obtenção de informações comerciais dos concorrentes”.
Lixo acumulado e tóxico
Pode haver um ponto perturbador sobre a garbologia, além do espectro de espionagem. Ela chama a atenção para a enorme quantidade de lixo disponível, esperando para ser escavado ou simplesmente retirado e analisado.
O antropólogo Eriksen argumenta que as gigantescas pilhas de lixo que hoje sujam o planeta são sintomas do que ele chama de “modernidade superaquecida”.
Particularmente, as comunidades mais remotas e tradicionais às vezes produzem muito menos lixo. Um estudo de Ann Marie Wolf, diretora-executiva do Instituto de Pesquisa Ambiental Sonora em Tucson, no Arizona (Estados Unidos), e suas colegas analisou em 2003 os resíduos descartados pelo povo nativo americano Tohono O’odham.
Os pesquisadores concluíram que eles representavam menos de um terço da média americana de lixo sólido diário de cada pessoa. E também continham muito menos material perigoso que o habitual em outras partes do país.
Prestar atenção é o que realmente importa atualmente com relação ao lixo, já que quase ninguém pensa duas vezes sobre ele. A garbologia é fascinante pelo que pode dizer sobre uma pessoa ou uma sociedade. Mas, em outro nível, mais fundamental, é uma das poucas formas que temos de combater o imenso volume e complexidade das montanhas de lixo que estamos construindo.
Os garbologistas estão entre as poucas pessoas que se preocupam em examinar essa massa descartada e esquecida. São eles que se ocupam de observar o quanto todos nós jogamos fora e perguntar: “O que significa tudo isso?”.
Fonte: BBC Future.