Muitos conhecem a sensação desconfortável de uma noite de calor, que leva a um sono agitado e, na manhã seguinte, compromete as atividades diárias. Não é somente uma sensação desagradável.
Anos de pesquisas demonstram que a privação do sono pode incrementar o risco de doenças cardíacas, intensificar os transtornos de humor, diminuir a capacidade cognitiva, e, muito mais, problemas de grande impacto individual, social e econômico.
Hoje, uma nova pesquisa estabelece correlação entre a perda de sono, com os problemas que isto acarreta, e mudança climática. Pesquisadores da Universidade de Copenhagen, na Dinamarca, descobriram que o aumento das temperaturas noturnas, impulsionado pela mudança climática, encurta o sono, adiando seu início e reduzindo a qualidade de descanso.
O estudo, publicado na semana passada na revista One Earth, mostra que as pessoas monitoradas perderam horas de descanso até em locais onde as temperaturas não eram muito elevadas e tiveram dificuldades para se adaptar a climas desafiantes. Os pesquisadores alertam que a perda de sono continuará à medida que aumentarem as temperaturas, e estimam que as pessoas terão o equivalente a 13 ou 15 dias de sono ruim, a cada ano, até o final do século.
É um exemplo muito claro de como as mudanças climáticas afetam a vida cotidiana das pessoas, dizem os especialistas, não só em forma de catástrofes, como secas ou inundações, mas em pequenos custos. A perda de sono devido às mudanças climáticas “já está acontecendo não no futuro, mas hoje”, diz Kelton Minor, principal autor do estudo e pesquisador da Universidade de Copenhague.
Questão de graus
Minor e outros cientistas analisaram os dados agrupados em todo o mundo, entre 2015 e 2017, de 50 mil pessoas, aproximadamente, monitoradas por meio de pulseiras eletrônicas. Os rastreadores registraram quando as pessoas dormiam, acordavam e como dormiam. Mesmo com os dados de identificação removidos, os cientistas mapearam a localização dos usuários de acordo com informações meteorológicas específicas.
Os pesquisadores compararam os dados do sono com as temperaturas externas locais, sem a informação sobre as condições internas ou se o ar condicionado estava em uso. O monitoramento constante permitiu ver como cada indivíduo dormia em uma noite fria no mês de junho contra uma mais quente alguns dias depois, ou como era o descanso em uma noite quente fora de época, em fevereiro.
O conjunto de dados era excepcional, pois não dependia de reportes de autoavaliação, que geralmente são pouco confiáveis. E, também, abrangeu o mundo, sendo que os poucos estudos existentes sobre a relação direta entre clima e sono só incluíam grupos reduzidos de pessoas, ou eram limitados aos Estados Unidos.
Os resultados foram ainda mais notáveis. As temperaturas noturnas mínimas acima de 25°C aumentaram as probabilidades de que as pessoas durmam menos de sete horas, quando comparadas com temperaturas externas menores a 10°C. A perda em média é de 15 minutos por noite com temperaturas noturnas de até 30°C.
A diferença pode não parecer grande, mas “na verdade, é preocupante”, diz Sara Mednick, pesquisadora do sono da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, outros estudos científicos sugerem que esses 15 minutos, provavelmente, vêm do estágio de sono de “onda lenta”, de acordo com Mednick. Portanto, tirar 15 minutos, ou até cinco, corta uma grande parte do tempo restaurador.
O calor atinge, em maior medida, alguns grupos sociais. O impacto aumenta com a idade: o estudo mostra que pessoas de mais de 70 anos perderam 30 minutos ao invés de 15 sob condições climáticas similares, tornando este grupo social até duas vezes mais sensível.
A temperatura “ideal” do quarto para que os idosos tenham a melhor noite de sono é entre 20 a 25° Celsius. Cinco graus acima, e a eficiência do sono cai entre 5 a 10%. É o que constatou um estudo recente publicado na revista Science of The Total Environment. Trabalhos anteriores, porém, já haviam sugerido que a temperatura ambiente perfeita para dormir é de 18,3° Celsius.
Para chegar a esse resultado, os pesquisadores analisaram quase 11 mil noites de sono de 50 idosos. As conclusões, no entanto, vão além do termostato do ar-condicionado: também sublinham o potencial impacto da crise climática – e o aumento da temperatura global – na qualidade do sono de adultos mais velhos, especialmente aqueles com condições socioeconômicas mais baixas.
“Países tropicais tendem a ter temperaturas mais altas e umidade elevada, o que pode tornar o quarto um ambiente menos confortável, especialmente sem climatização adequada”, explica Gleison Guimarães, pneumologista e especialista em medicina do sono. “Quando pensamos na aposentadoria composta por um salário mínimo, dificilmente uma pessoa que a recebe vai ter condições de pagar pela conta de luz e elevada no fim do mês. Ou seja, a renda também pode influenciar, mesmo que indiretamente, na qualidade do sono.”
Mulheres também são maiormente afetadas, perdendo cerca de 25% mais sono do que a média, em temperaturas mais quentes. (O uso de pulseiras eletrônicas se baseia em pessoas de maior poder aquisitivo, então, é provável que os resultados subestimem os impactos de forma geral.)
Para residentes de países mais pobres, a perda de sono é cerca de três vezes maior do que em nações mais desenvolvidas, em parte, talvez, por causa do menor acesso ao ar condicionado.
“Isso tira os efeitos das mudanças climáticas do catastrófico e existencial, e evidencia como nos afeta todos os dias”, diz Jamie Mullins, economista ambiental da Universidade de Massachusetts, nos EUA, que não participou da pesquisa. “Vai nos custar em pequenas formas, que se acumularão.”
O corpo não se adapta
O mais preocupante é que as pessoas não parecem poder adaptar-se às noites mais quentes, mesmo quem já vive em climas mais quentes durante todo o ano, ou mesmo só experimentando o calor durante o verão. O aumento das temperaturas durante a noite se reflete em menor qualidade de sono, aponta o estudo.
“Não há evidências que as pessoas se adaptem, pelo menos no âmbito psicológico”, diz Minor.
Isso faz sentido, explica ele, dado que nossos corpos regulam a temperatura interna de forma precisa. Alguns graus acima ou abaixo e nossos órgãos começam a falhar ou desligam. A temperatura corporal é um dos principais mecanismos de controle do sono: antes de dormir, desviamos o sangue para nossas extremidades e esfriamos levemente nosso núcleo. Sem essa mudança, o sono fica muito mais difícil.
A necessidade de um controle tão rígido sobre nossa temperatura corporal nos torna menos flexíveis diante do agravamento das condições de sono.
A mudança climática causada pelo homem já aqueceu o planeta em aproximadamente 1,1°C, desde o século 19. Porém, as noites aqueceram mais do que os dias na maior parte do mundo; nos EUA, ficaram duas vezes mais quentes.
“Antes, as noites eram o momento de esfriar o corpo. Mas quando [o calor] é fator de estresse crônico, o corpo não consegue se esfriar e recuperar, e essa é uma peça-chave que prejudica a saúde das pessoas”, diz Rupa Basu, especialista em saúde pública da Secretaria de Avaliação de Riscos de Saúde Ambiental da Califórnia, EUA.
Os pesquisadores de Copenhague estimaram que as noites mais quentes já custam aos cidadãos cerca de 44 horas de sono por ano. Há também 11 dias extras de “sono curto”, noites com menos de sete horas dormidas.
Com o aquecimento global, a tendência é que os impactos no sono também aumentem. Estima-se que para o final do século, as pessoas perderão 50 horas por ano se as emissões de carbono continuarem no ritmo atual.
“Os humanos são notavelmente adaptáveis, mas existem limites físicos reais para a adaptação que precisamos considerar”, ressalta Minor. Dormir com temperaturas elevadas, segundo mostra sua análise, pode ser um deles.
Fonte: National Geographic.
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