Em duas décadas, número de acidentes com escorpiões no Brasil aumentou 1.375% e o de mortes, 816%

Eles estão na Terra há 430 milhões de anos, vivem nos desertos e matas, podem variar de 12 mm a 21 cm em tamanho, são tímidos e furtivos. No ambiente urbano, adoram a escuridão e lugares úmidos e quentes, como interior de porões, pilhas de entulhos, lixo, frestas de residências, sapatos, guarda-roupas e ralos, por exemplo. Sua picada causa dor pode até mesmo levar à morte. A cada ano, os escorpiões picam 1,5 milhão de pessoas no mundo, levando a óbito a 2.600 delas.

No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, o número de acidentes com escorpiões saltou de 12.552, em 2000, para 185.264, em 2022, uma alta assombrosa de 1.375% em 22 anos. O número de mortes no mesmo período teve um crescimento menor, mas não menos impressionante: 816%, pulando de 12 para 98. Para comparação, este último número de óbitos, referente 2022, é maior do que o causado por serpentes, os animais peçonhentos mais letais, que foi de 92, resultado de 29.928 ataques.

Há pelo menos duas razões para esse grande crescimento do números de acidente e mortes causadas por escorpiões no país. Alguns acreditam que as mudanças climáticas têm algo a ver com isso, outros argumentam que o fenômeno está mais ligado à degradação e outras alterações ambientais também ligadas a atividades humanas. Entre os primeiros está o biólogo e bioquímico Malson Neilson de Lucena, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (MS). De acordo com ele, com o aquecimento global aumenta o número de incêndios, como se viu recentemente no Pantanal e no Cerrado.

A consequência dessas queimadas é a destruição dos habitats naturais dos escorpiões e de suas presas e predadores. “Isso ‘empurra’ esses animais para os centros urbanos”, explica Lucena. “Muitos desses predadores não conseguem sobreviver no novo ambiente. O mesmo ocorre com as presas, que são principalmente insetos.” Então, sem animais que se alimentem deles e com novas fontes de comida, como as baratas, por exemplo, comuns no lixo das cidades, as populações de escorpiões aumentam significativamente, o que contribui para elevar o número de encontro com humanos e, consequentemente, o de acidentes.

DE acordo com o biólogo Antonio Carlos Lofego, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) é possível pensar que essa explosão de acidentes está associada ao aumento da população de escorpiões, que pode ter sido induzida por alguma prática de manejo adotada aqui no Brasil. “Temos no país uma cultura muito forte de realizar o controle de pragas, seja agrícolas ou urbanas, com uso de defensivos químicos”, explica. “Esses agrotóxicos são muito nocivos ao equilíbrio ambiental, uma vez que além da praga, acabam matando muitos outros organismos, inclusive vários muito úteis para nós, como aqueles que predam e são inimigos naturais das pragas.”

No caso dos escorpiões, eles são geralmente mais resistente aos defensivos, ou seja, quase não morrem com aplicação desses produtos, mas acabam sendo incomodados por eles e se deslocam, indo colonizar outras áreas. Quando esse processo com frequência leva à dispersão desses animais, que passam a ocupar novas áreas. “E com o agravante de agora não ter seus inimigos naturais, que foram mortos com aplicação dos defensivos”, acrescenta Lofego. “Assim as populações crescem sem controle”.

“Por exemplo, o escorpião que mais causa acidentes atualmente, o Tityus serrulatus (escorpião amarelo), é nativo do Cerrado, justamente o bioma brasileiro que mais tem sido destruído nas últimas décadas para expansão do agronegócio”, explica. “Assim, a espécie parece ter se adaptado bem a ambientes urbanos para os quais tem migrado, mas seus predadores parecem não ter essa adaptação e estão desaparecendo junto com destruição dos seus ambientes naturais.”

Os escorpiões pertencem à classe dos aracnídeos, a mesma das aranhas, ácaros e carrapatos. Existem cerca de 2.000 espécies no mundo, das quais cerca de 160 no Brasil. Apenas quatro delas são responsáveis, no entanto, pela quase totalidade dos ataques. Também causa muitos acidentes a espécie Tityus stigmurus, principalmente no Nordeste – ambas as espécies são escorpiões amarelos. Além dessas duas, que respondem pela grande maioria dos ataques no país, há o escorpião marrom (Tityus bahiensis) mais associado ao estado de São Paulo, e o preto (Tityus obscurus), responsável pelos acidentes na região Norte. “Todas as quatro espécies causam acidentes graves, que podem levar a óbito, principalmente crianças menores de 10 anos”, alerta Lofego.

No livro que organizou, “Conhecendo os escorpiões: Um guia para entender como prevenir os acidentes com escorpiões, Lucena explica que os acidentes geralmente ocorrem à noite, na casa da vítima. “Crianças, adolescentes e idosos constituem grupos mais vulneráveis, apresentando maiores índices de letalidade”, escreve. “A mortalidade em vítimas com menos de 9 anos de idade, é atribuída ao sistema imunológico mais debilitado.”

Mas, segundo a obra, o envenenamento ocorre com maior frequência nas faixas etárias de 20 a 59 anos e a gravidade das picadas está relacionada à presença de neurotoxinas na peçonha. “O primeiro sintoma do envenenamento é a dor localizada, estando presente em mais de 95% dos casos, podendo estar associado com inchaço e vermelhidão local”, diz o livro de Lucena. “Sintomas mais graves ocorrem na minoria das vítimas, podendo ocorrer uma forte resposta inflamatória, que piora os sintomas.”

Cuidados e prevenção

No geral, várias funções vitais podem ser afetadas, incluindo as dos sistemas cardiovascular, respiratório e neuromuscular. Dependendo da gravidade dos acidentes, os pacientes são tratados com uso de analgésicos ou com soro antiescorpiônico ou a combinação de ambos. Antes de procurar atendimento médico, é recomendado limpar o local da picada com água e sabão e aplicar compressa morna no local. Em seguida, deve-se procurar orientação imediata e mais próxima do local da ocorrência do acidente num serviço de saúde e, se para possível, capturar o animal e levá-lo aos médicos ou especialistas.

O livro de Lucena também ensina o que não fazer em caso de acidente: não amarrar ou fazer torniquete; não aplicar qualquer tipo de substância sobre o local da picada (fezes, álcool, querosene, fumo, ervas, urina), nem fazer curativos que fechem o local, pois isso pode favorecer a ocorrência de infecções; não cortar, perfurar ou queimar o local da picada; e não dar bebidas alcoólicas ao acidentado, ou outros líquidos como álcool, gasolina ou querosene, pois não têm efeito contra o veneno e podem agravar o quadro.

Medidas simples podem manter escorpiões longe de residências e evitar acidentes. Como no meio urbano esses animais se alimentam principalmente de baratas, moscas e outros pequeno insetos, é bom evitar acúmulo de sujeira em casa e evitar deixar peças de roupa e cobertores em contato com o chão. Além disso, é importante manter lixos bem fechados e combater a umidade em armários (como sapateiras). Também recomenda-se utilizar soleiras nas portas e janelas, telas em ralos do chão, pias e tanques.

Fonte: Um Só Planeta.

Foto: Getty Images.