Em audiência pública promovida pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na tarde desta segunda-feira (27), especialistas alertaram para riscos ambientais, sociais e patrimoniais da proposta de emenda à Constituição que transfere os terrenos de marinha — terras da União no litoral — para ocupantes particulares, estados e municípios (PEC 3/2022). O debate atendeu a um requerimento (REQ 24/2024) do senador Rogério Carvalho (PT-SE).
A coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marinez Eymael Garcia Scherer, informou que a área de segurança nos terrenos de marinha em outros países costuma ser maior que a adotada no Brasil (33 metros). Ela citou o exemplo de Portugal (50 metros), Suécia (100 a 300 metros), Uruguai (150 a 250 metros) e Argentina (150 metros). A PEC pode significar, na visão de Marinez, um risco de ônus para toda a sociedade e de perdas na qualidade de vida.
Marinez Scherer também alertou que o nível do mar vem subindo nos últimos anos. Esse aumento, ressaltou, avança exatamente sobre a área de segurança e dos terrenos de marinha. Ela disse que essas áreas, que normalmente têm manguezais, restingas e falésias, são consideradas áreas de preservação ambiental permanentes. Segundo Marinez, se houver perdas nessas estruturas naturais, haverá perdas de bem-estar humano e perdas econômicas. Ela citou o exemplo recente do Rio Grande do Sul e disse que as perdas econômicas atingem toda a população.
— Não é à toa que essas áreas são consideradas áreas de conservação permanente. São assim porque são importantes para a segurança humana e para o bem-estar humano — registrou.
A secretária-adjunta da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União no Ministério da Gestão e da Inovação dos Serviços Públicos, Carolina Gabas Stuchi, afirmou que a PEC é de interesse de toda a população brasileira. Segundo Carolina Stuchi, o domínio da União sobre a faixa da costa marítima é essencial para a soberania nacional e para o equilíbrio do meio ambiente. Ela ainda disse que, se a PEC fosse aprovada hoje, haveria “um caos administrativo”, porque a estimativa é que existam cerca de 3 milhões de imóveis não registrados ocupando essa faixa.
De acordo com Carolina, a proposta extingue a faixa de segurança e permite a transferência do domínio pleno, o que poderia agravar a questão fundiária relacionada a povos tradicionais. Ela acrescentou que outros países estão recomprando as áreas de praia que haviam sido privatizadas tempos atrás. Para a secretária, a PEC ainda pode ser aperfeiçoada. Ela ainda disse que leis mais simples já podem auxiliar a resolver os problemas relacionados aos terrenos de marinha.
— A PEC favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas, tornando esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos extremos. A proposta ainda permite a privatização e cercamento das praias, trazendo impacto no turismo e na indústria de pesca — alertou Carolina.
Diretor do Departamento de Assuntos do Conselho de Defesa Nacional do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Bruno de Oliveira, opinou de forma contrária à PEC. Ele disse que a mudança pode chocar com princípios de soberania nacional, justiça social e pontos importantes da preservação do meio ambiente. Para Oliveira, eventuais ajustes podem ser feitos por meio de projetos de lei.
Para o deputado Túlio Gadelha (Rede-PE), a PEC vem em um momento delicado, por conta da situação do povo gaúcho. Ele disse que terreno de marinha é terreno da União — o que significa que é terreno do povo. Na opinião do deputado, só a União tem capacidade de gerir e fiscalizar os terrenos de marinha. Ele disse que nos municípios há mais barganhas políticas, o que poderia favorecer os problemas ambientais. O deputado reconheceu que o texto não fala em privatização de praias, mas apontou que essa será uma das possíveis consequências da transferência dos terrenos para estados, municípios e particulares.
— Flexibilizar a legislação ambiental é um risco para o país e um risco para quem mora no litoral. Estamos indo contra a tendência do mundo. Há muito interesse econômico atrás dessa PEC. Essa proposta é terrível para o meio ambiente e para as pessoas — protestou Gadelha.
Portos e pesca
Na visão de Ana Ilda Pavão, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, a PEC é um retrocesso. Ela disse que as leis precisam se atentar à realidade local. Segundo Ana Pavão, o Senado precisa ouvir mais aqueles que são diretamente atingidos pela mudança legislativa. Ela abriu uma bandeira do movimento e disse a PEC “não tem nada a ver” com os pescadores, que já sofrem com o assoreamento e com o desmatamento. Conforme informou Ana Pavão, já há várias áreas alagadas no Maranhão, impedindo a permanência de povos tradicionais.
— O teor dessa PEC, no fundo, é a urbanização das orlas, são os grandes empreendimentos. Quem vai lucrar? Não somos nós. Nós só vamos perder. Essa PEC precisa ser revista. Muito tem se falado aqui, mas se esqueceram de falar da vida — registrou.
De acordo com a gerente técnica da Associação dos Terminais Portuários Privados (ATP), Ana Paula Franco, todo terminal usa parte do terreno de marinha, com a devida autorização do poder público. Por isso o interesse do setor na PEC. Ela disse que a ATP é desfavorável à proposta, por trazer insegurança jurídica — comprometendo os negócios dos terminais. Ana Paula lembrou que a construção de um porto exige um longo tempo, sua operação demanda muitos investimentos e alertou que essas mudanças legais podem judicializar a questão.
Na mesma linha, o diretor-presidente do Instituto de Terras do Estado do Amapá, Reneval Tupinambá Conceição Júnior, classificou a proposta como temerária e pediu mais debate sobre o tema. Ele disse que em seu estado há uma certa confusão entre terrenos urbanos e rurais nas áreas classificadas como terrenos de marinha. Reneval Júnior ainda pediu mais envolvimento do governo federal, ao cobrar mais valorização para os setores que trabalham com regularização de patrimônio.
Municípios
Em outro sentido, os prefeitos convidados defenderam a capacidade de os municípios administrarem os terrenos de marinha. O prefeito de Belém (PA), Edmilson Rodrigues (PSol), afirmou que 42% da área continental do município são constituídos por terrenos de marinha ou acrescidos. Ele disse que a proposta faz a ressalva para as áreas de segurança nacional, que permaneceriam com a União.
Segundo o prefeito, há situações que demandam uma atenção maior do poder público, que é o caso de terrenos que são ocupados por pessoas de baixa renda. Ele disse que há um bom diálogo com o governo federal para tratar do assunto e lembrou que Belém “vive há séculos” com a ocupação dos terrenos de marinha. De acordo com o prefeito, há muitos casos em que o ocupante do terreno tem que pagar a taxa de ocupação para a união e ainda o IPTU para o município.
— Não é por combater a especulação imobiliária que temos de fazer uma injustiça social — alertou.
O prefeito de Florianópolis (SC), Topázio Neto (PSD), manifestou preocupação com a realidade local dos terrenos de marinha. Ele disse que há pouco registro oficial dos ocupantes dessas áreas. Segundo Topázio Neto, são os municípios que têm investido na gestão desses terrenos ao longo dos anos – até mesmo para atender demandas judiciais. Ele também afirmou que as áreas de preservação permanentes seguirão com essa classificação, mesmo se a PEC para aprovada.
— O fato de serem terrenos de marinha não elimina o fato de o município ter de fazer investimentos. Se forem privatizadas, não vai acabar com o compromisso do município. Esse ponto teria de ser mais discutido. Uma única fórmula para o Brasil inteiro não vai funcionar. Cada município tem uma realidade diferente — ponderou o prefeito.
Redes sociais
No último fim de semana, houve um movimento nas redes sociais contrário à PEC. Surfistas, influencers e ativistas gravaram vídeos para se posicionar de forma contrária à proposta e pedir aos internautas para também se manifestarem contrariamente. Até o fechamento desta matéria, a PEC tinha menos de 800 apoios de internautas no portal e-Cidadania. Os votos contrários eram mais de 47 mil.
O senador Fabiano Contarato (PT-ES) também foi às redes sociais registrar sua posição. Ele disse ser favorável ao fim da cobrança de laudêmio e foro (do governo federal), restando apenas a cobrança de IPTU (imposto municipal). O senador, no entanto, se manifestou contrário à possibilidade de transferência dos terrenos de marinha para estados e municípios, sob o risco de as praias serem privatizadas.
— [A PEC] é um perigo para a pauta ambiental. Vai favorecer a especulação imobiliária e a construção de resorts. Vou votar contra essa proposta — afirmou o senador, em vídeo divulgado em sua página no X (ex-Twitter).
Terrenos de marinha
Os terrenos de marinha são terras da União no litoral, situados entre a linha imaginária da média das marés registrada no ano de 1831 e 33 metros para o interior do continente. É uma faixa costeira considerada estratégica pelo governo. Também são consideradas nessa condição as margens de rios e lagoas que sofrem influência das marés. Apesar do nome, terrenos de marinha nada têm a ver com a paraça armada Marinha. São determinados por estudos técnicos, com base em plantas, mapas e documentos históricos.
O conceito foi instituído ainda no tempo do Império, com a vinda de Dom João VI e da família real. As terras eram destinadas à instalação de fortificações de defesa contra invasões marítimas. A medida de 15 braças, equivalente a 33 metros, era considerada a largura suficiente para permitir o livre deslocamento de um pelotão militar na orla e assegurar o livre trânsito para qualquer incidente do serviço do rei e defesa do país. Também era um espaço estratégico para o serviço de pesca, já que era uma faixa onde os pescadores puxavam as redes. Hoje, a principal legislação sobre o assunto é o Decreto-lei 9.760, de 1946.
Fonte: Agência Senado.
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