Expansão de eólicas ameaça comunidades e Caatinga no semiárido do Rio Grande do Norte

“Onde eles botam essas bichas, ninguém pode trabalhar. Onde tem essas bichas, casa não pode ter perto. Que nem essa aí”, fala indignado José Ponciano de Oliveira, 73 anos, enquanto aponta para o enorme aerogerador, de 135 metros de altura, construído ao lado de sua casa. “Porque se uma bicha dessas voa para cima de uma casa, não acaba com tudo? Oitenta mil quilos?”, questiona o agricultor. Ele mora há mais de 40 anos no sítio Cabeça dos Ferreira, comunidade quilombola Macambira, entre os municípios de Bodó, Lagoa Nova e Santana do Matos, na Serra de Santana, interior do Rio Grande do Norte.

A região é uma dentre diversas outras dos estados do Nordeste que têm experimentado o avanço dos empreendimentos eólicos — e, com eles, ameaças ao estilo de vida da população.

Família Oliveira convive dia e noite com o aerogerador instalado em sítio vizinho, a 110 metros de sua residência, na comunidade quilombola da Macambira, na Serra de Santana (RN)

A monumentalidade e o barulho constante do aerogerador dominam todo o ambiente: casa, terreiro e curral. Pouco mais de cem metros separam a casa da turbina. O equipamento é instalado em uma propriedade vizinha, mas bem próximo à cerca e à casa de Ponciano.

“Essas torres, logo quando foram instaladas [em julho de 2016], eu tampava até os ouvidos com algodão, mode o barulho. Porque a pessoa se incomodava muito”, conta Maria dos Milagres dos Santos Pinheiro, 50 anos, mulher de Ponciano. “No início, tivemos que dormir em outras casas por causa do barulho e do medo, conta a filha, Ana Beatriz Pinheiro de Oliveira, 23 anos.

Pela regulamentação vigente, a resolução Conama 462, de 24 de julho de 2014, a distância não poderia ser menor que 400 metros, pelos riscos envolvidos e impactos gerados na operação do equipamento.

Segundo os moradores, chegou a ser iniciada uma conversa com a empresa Gestamp Eólica Macambira para a construção de uma outra casa, mais longe das turbinas, mas a proposta nunca teve andamento. A empresa foi procurada pela reportagem, mas não atendeu aos pedidos de posicionamento.

Relatos como o da família da comunidade Macambira têm aparecido em várias regiões dos estados do Nordeste nos últimos anos junto ao avanço dos empreendimentos eólicos. O processo de transição energética pelo qual passa o país, que busca diversificar a matriz, a fim de reduzir a dependência das hidrelétricas e também o uso de combustíveis fósseis – cuja queima é a principal responsável pelo aquecimento global –, vem sendo acompanhado de impactos socioambientais que ainda precisam ser resolvidos.

Em viagem por Rio Grande do Norte, campeão de geração eólica no país, e Paraíba, a Agência Pública encontrou, além do incômodo perturbador do barulho, desmatamentos, danos a cisternas de armazenamento de água potável e violações a direitos. Para especialistas ouvidos pela reportagem, processos de licenciamentos ambientais simplificados, com poucas exigências, estão na origem do problema. Pesquisadores alertam também que nem mesmo a promessa de desenvolvimento local tem se concretizado.

Promessas das empresas de energia eólica ficaram no papel, dizem moradores

Em maio de 2023, o Brasil atingiu a marca de 10 mil aerogeradores em operação – há 10 anos, eram 1.300. A energia gerada por eles representa 13,4% da matriz elétrica brasileira, segundo dados de julho da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Somente no Rio Grande do Norte, 3 mil estão em operação, com 7,9 gigawatts de potência fiscalizada. A Bahia, segunda colocada no ranking, vem logo atrás, com 7,6 GW e 2.878 aerogeradores. Juntos, os dois estados já têm mais potência instalada que a usina hidrelétrica de Itaipu.

Embora não sejam novidade em solo potiguar, onde há parques eólicos em operação desde 2006, os empreendimentos têm se expandido a um ritmo acelerado nos últimos anos. Somente em 2023, até a primeira semana de julho, 262 novos aerogeradores entraram em operação comercial. Cada vez mais potentes e mais altos, os equipamentos atuais podem chegar à altura de 200 metros, o equivalente a um prédio de 66 andares.

Inicialmente instalados massivamente na faixa litorânea norte do estado, onde ainda continuam a se expandir, os novos empreendimentos têm se voltado também para o interior, sobretudo o sertão do Seridó. Hoje, a região já responde por 7% da produção do estado, puxada pela ocupação, entre 2015 e 2017, da Serra de Santana, onde fica a comunidade Macambira.

Por lá, a população sente a ressaca da instalação e operação dos projetos eólicos e reclama do incômodo na nova vizinhança. Moradores e comerciantes das comunidades ao longo da RN-087 – rodovia que liga os municípios de Lagoa Nova a Tenente Laurentino Cruz – também se queixam do tráfego de veículos pesados e das péssimas condições da via, que não é pavimentada.

“Quando chove, as pessoas não conseguem transitar porque é muita lama, muito buraco e nós não tínhamos isso. As pessoas adoeceram com bronquite asmática porque a poeira aumentou. [As empresas] falam que com um caminhão pipa conseguem mitigar essa poluição, mas não conseguem”, afirma Anderson Palmeira, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário de Buraco de Lagoa, que representa moradores de cinco localidades na região.

Francisco Canindé, da comunidade Baixa Grande, município de Lagoa Nova, lembra que o processo de convencimento da população começou ainda em 2002, com promessas de pavimentação de estradas e duplicação de pontes. “Nada foi cumprido, ficaram só as promessas no Powerpoint”, diz. A região onde vive não aceitou a instalação das turbinas, mas foi cortada por uma estrada de acesso que já provocou muita poeira e protesto dos moradores. Segundo ele, no Assentamento Santa Clara, foi preciso que os moradores bloqueassem a via para que as empresas pavimentassem trechos próximos às residências.

Em outra comunidade próxima, na Serra de Santana, os problemas apontados pelos moradores são rachaduras nas cisternas de placas – fruto de projetos do governo federal com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), executados a partir dos anos 2000. “No período de seca, as famílias dependem dessas cisternas para beber água, e as empresas não reconhecem que foram eles [que causaram os danos] com o trânsito de veículos pesados, com as explosões com dinamites. Quando a gente vai procurar, nenhuma delas se responsabiliza”, afirma o morador Anderson Palmeira.

A própria ASA apontou este, entre outros problemas, em carta entregue ao presidente Luís Inácio Lula da Silva, quando ele visitou o Recife, em março deste ano. “As terras onde as turbinas estão instaladas tornam-se improdutivas; a saúde das famílias que vivem nas proximidades se deteriora física e mentalmente; as mulheres são expostas a todo tipo de violência física e sexual. Isso sem contar a quantidade de cisternas abandonadas, seja porque as famílias não conseguem permanecer em suas casas, devido ao barulho contínuo, ou pelo pó gerado pelas turbinas que contamina a água, seja porque as cisternas acabam danificadas no processo de geração da energia”, aponta a entidade.

Avanço das renováveis pode aumentar desertificação

No novo ciclo de expansão dos empreendimentos de energia pelo Seridó, estão na mira os topos de serra. A expectativa é que a região forneça 25% dos próximos 9 GW de energia eólica previstos para o Rio Grande do Norte, com 538 dos 1.873 novos aerogeradores.

Do outro lado da fronteira estadual, na Paraíba, mais 213 torres eólicas já estão em operação e outras 618 devem ser instaladas nas serras, onde também já há forte investimento em energia solar.

Trata-se, porém, de uma região ambientalmente sensível. Dividido entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o Seridó abriga um dos seis núcleos de desertificação mais avançada no Brasil. Situação que pode piorar com o desmatamento da Caatinga, causado, em parte, pela implementação dos empreendimentos.

No ano passado, cerca de 4 mil hectares foram desmatados na já fragilizada Caatinga para a implantação de complexos eólicos ou solares, segundo dados do Mapbiomas Foi a primeira vez que a plataforma monitorou especificamente a supressão vegetal para empreendimentos energéticos.

No Rio Grande do Norte, 326 hectares de Caatinga foram derrubados para instalação dos empreendimentos, sendo metade no Seridó. Do lado da Paraíba, a região concentrou 95,6% dos 901 hectares desmatados na Caatinga pelo avanço das duas fontes de energia renovável.

O desmatamento causado para a instalação de empreendimentos de energia eólica e solar representam apenas 2,9% da perda detectada no bioma, mas chamam a atenção por atingirem uma área considerada ainda mais preservada. “O desmatamento atual no bioma está mais fortemente associado à expansão das atividades agropecuárias”, explica o pesquisador Washington Rocha, que coordena as análises sobre a Caatinga no MapBiomas.

Mas as supressões ligadas às renováveis, diz o pesquisador, estão avançando para locais onde existem remanescentes de Caatinga onde há formações florestais. “Possivelmente é onde se encontram os refúgios da vida silvestre. Então precisaria haver uma discussão sobre o custo desse avanço. Que limites vai se dar a isso?”, questiona.

“A Caatinga é uma das regiões semiáridas mais biodiversas do mundo, com fauna e flora rica e adaptada, bem diferente daquele pensamento ultrapassado de um ambiente pobre e pouco importante”, complementa Paulo Henrique Marinho, biólogo e professor da Escola Profissional de Aracati (CE).

Em seu doutorado em Ecologia, Marinho pesquisou os padrões de ocorrência de mamíferos de médio e grande porte na Caatinga potiguar. “Só de felinos, podemos encontrar até cinco espécies, entre elas os gatos-do-mato e as onças que, atualmente, por conta das ações humanas, estão cada vez mais ameaçadas e raras no bioma.”

Na falta de um zoneamento ecológico específico e rigoroso, diz ele, os empreendimentos geralmente são instalados nas áreas mais estratégicas e prioritárias para a conservação da biodiversidade da Caatinga, como as serras, no caso das eólicas. Os topos de serras, por serem mais úmidos e com temperaturas mais amenas, são redutos de biodiversidade de fauna e flora, com ocorrência de espécies ameaçadas de extinção.

Ele defende que a ocupação deveria ser acompanhada de medidas de conservação, como a criação de unidades de conservação como compensação dos empreendimentos.

Fonte: Agência Pública

Foto: João Léo/Ronin Digital.