O Brasil é o país das praias. Para o brasileiro, é comum desfrutar da infinidade de orlas em 7.491 quilômetros de litoral e uma vida inteira não é suficiente para conhecer cada uma dessas faixas de areia banhadas pelo Oceano Atlântico.
Trata-se de um patrimônio cujo dono é a própria população. Ao menos é o que define a Constituição Federal em seu Artigo 10 da Lei nº 7.661: “As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar”. Essa “liberdade”, no entanto, está ameaçada.A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal propôs para esta segunda-feira (27) uma audiência pública para tratar da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que versa sobre a possibilidade de transformar as praias brasileiras em ambientes privados.
A PEC 03/2022, de autoria do deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA), versa sobre a possibilidade de tornar as praias brasileiras uma espécie de “Cancún” e está prevista para ser debatida em audiência pública a partir das 14h desta segunda.
O relator da pauta no Senado é o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). A ideia é, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, “extinguir os terrenos de marinha e concedê-los à iniciativa privada sem uma contrapartida socioambiental, como funciona atualmente com os devidos controles”.
O que diz a PEC?
A PEC 03/22 propõe a extinção do “instituto jurídico do terreno de marinha e seus acrescidos” e dispõe “sobre a propriedade desses imóveis”, explica Letícia Camargo, coordenadora do Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), ligado à Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional.
Essas áreas pertencem à União, mas grande parte delas é ocupada por particulares que pagam pela sua utilização. A PEC propõe a transferência da propriedade de parte desses imóveis para Estados, municípios e os atuais ocupantes. Mas o que, aparentemente, pode ser uma simples mudança de titularidade, esconde uma grande ameaça, disse a coordenadora do GT em declarações enviadas à Sputnik Brasil.
Por meio de nota, o Grupo de Trabalho sinaliza que a motivação para essa PEC “não é estrategicamente pautada nas diferentes funções (econômica, ambiental, social) dos terrenos de marinha”.
Hoje, segundo ressalta o GT, a “União tem autonomia para dar outras funções a esses espaços, que não uma finalidade privada”.”Entretanto, com a transferência da propriedade para os ocupantes, a necessidade de desocupação posterior, para a criação de áreas de recuo da terra em relação ao avanço do mar, implicará em custos com desapropriação, trazendo prejuízos ao erário. A intensificação dessa ocupação trará prejuízos adicionais, não apenas aos novos proprietários desses imóveis, mas também à União”, alerta a nota técnica colaborativa do GT-Mar, produção colaborativa de técnicos, cientistas, representantes da sociedade civil organizada e especialistas nas temáticas relacionadas à zona costeira e marinha brasileira.Em entrevista à Sputnik Brasil, Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, argumenta que o tratamento da PEC causa danos irreparáveis e precisa de uma participação maior da sociedade civil.
“A PEC 03/2022 trata das ocupações em terrenos de marinha sem as cautelas necessárias com relação à importância dessas áreas, que, entre outros problemas, tendem a ser diretamente afetadas pelo aumento do nível do mar advindo do aquecimento global”, disse Araújo à Sputnik.
Segundo a especialista, essas alterações normativas atendem demanda principalmente dos grandes empresários do turismo. “Esse tema necessita de uma discussão ampla com os cidadãos”, defendeu.
Grande risco para a União
A nota técnica do GT-Mar explicita que a União corre um grande “risco jurídico ao promover esse repasse já tendo o conhecimento das tendências erosivas e de perda de território, podendo abrir caminhos para processos de perdas e danos e pedidos de indenização por parte dos novos proprietários”.
“Não parece apropriado vender um espaço que tem risco de deixar de existir no futuro, ainda mais tendo essa informação em mãos.”
O texto continua o alerta, dizendo que mais problemático ainda é que, ao transferir a titularidade da propriedade, a União está ajudando a levar a uma intensificação do processo erosivo, que comprometerá o funcionamento do sistema costeiro.
“Isso ocasionará um outro tipo de problema para o poder público, a pressão para realização de obras que recuperem esses ambientes e que protejam as propriedades, como o recente engordamento da praia de Balneário Camboriú em Santa Catarina, com seus custos e impactos associados”, chama atenção o GT.
Impactos socioambientais e culturais
A possível privatização das praias prevista na PEC 03/2022 traz como impacto não só o fato das faixas de litoral passarem a ter donos e, assim, acesso restrito, mas também inúmeros prejuízos ao meio ambiente e também ao aspecto sociocultural de comunidades que vivem nessas regiões.
“Ocupar as faixas de areia para fins de uso privado e turístico é uma ameaça, pois pode comprometer o complexo e delicado ecossistema costeiro. Diversos estudos alertam para o processo de erosão costeira que nossas praias vêm sofrendo, o que deverá se agravar com as previsões recentes de aumento do nível do mar e aumento da frequência de eventos extremos de ressacas do mar”, afirmou Adayse Bossolani, Secretária Executiva do Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional, ao site Conexão Planeta.
O Deputado Nilton Tatto (PT) destaca este impacto como também o que deve ser gerado às populações tradicionais.
“Ao longo da costa brasileira há muitos espaços que historicamente são ocupados por povos tradicionais, estamos falando de indígenas, quilombolas, caiçaras, pescadores. A aprovação dessa PEC vai intensificar o processo de matar esses espaços que são fundamentais pra manter viva tanto a biodiversidade, porque essas populações tem uma relação sustentável com o meio ambiente, como também tudo aquilo que se expressa de cultura. Culinária, festas, toda a produção cultural acaba sendo colocada em risco. É o que acontece quando se tem um empreendimento em algum lugar. Com o tempo você mata não só o meio ambiente, mas essa diversidade, essa riqueza cultural que está expressa nesses lugares”, alerta o petista.
Fonte: Brasil 247, Revista Forum.
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