No apagar das luzes da gestão de Bolsonaro, o governo federal lançou o edital do projeto Poço Transparente, que incentiva o fracking no Brasil. A prática consiste na exploração de reservatórios não convencionais de petróleo e gás por meio de técnicas como o fraturamento hidráulico e já foi banida em países como Alemanha, França e Reino Unido por estar associada a riscos à saúde humana e impactos socioambientais.
Como um dos requisitos para a qualificação de projetos por meio do edital, a versão preliminar do texto determinava que houvesse distância mínima de 1,5 mil metros entre o poço perfurado para fracking e aquíferos passíveis de uso doméstico ou industrial. Também demandava que os poços onde seria realizado o fraturamento hidráulico ficasse a pelo menos 500 metros de “construção habitada”.
Ilan Zugman, diretor para América Latina da organização 350.org, avalia que o documento é demasiadamente simplificado e impõe poucas restrições diante de uma técnica “perigosa e danosa” como o fracking, o que classifica como “temerário”. A 350.org é uma das 16 organizações da sociedade civil que, em nota lançada na sexta-feira (9), criticaram o edital e pediram sua “revogação imediata” ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao vice Geraldo Alckmin (PSB).
Os signatários do texto apontam que o Poço Transparente representa “iminente risco de danos irreversíveis a toda a sociedade brasileira e ao clima global”, já que o petróleo e o gás não convencionais obtidos via fracking são combustíveis fósseis, cuja queima produz gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global e as mudanças climáticas.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), é necessário que o mundo atinja, no máximo até 2025, o pico das emissões desses gases para manter viva a meta do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5°C. Por isso, para Zugman, o Brasil está na contramão do mundo ao apostar no fracking. “O governo deveria fortalecer a transição energética, colocar o foco nas energias renováveis e não em testar uma técnica que já foi banida em vários países”, afirma.
Impactos Ambientais
O fracking pode acarretar uma série de consequências ambientais, conforme vêm apontando a ciência e as comunidades impactadas ao longo dos anos.
Uma das mais notáveis são as significativas emissões de gases de efeito estufa (GEE), os grandes responsáveis pelo aquecimento global, não só nas etapas de exploração e produção do gás de folhelho, como na atividade do maquinário pesado utilizado nas operações e na intensa movimentação de veículos de transporte – o que causa também a piora da qualidade do ar local. Há ainda as emissões “fugitivas” de metano, um poderoso GEE, que ocorrem em momentos da injeção de fluidos nos poços e de sua volta à superfície (a “água de retorno”) para a extração do petróleo ou gás.
Um estudo de 2019 constatou que, durante a década anterior, a produção de gás de folhelho nos EUA – que, graças ao fracking, se tornaram o maior produtor mundial de hidrocarbonetos – pode ter contribuído para mais da metade do aumento das emissões derivadas de combustíveis fósseis em todo o planeta e para aproximadamente um terço da elevação de emissões globais de todas as fontes de GEE no mesmo período.
Os tremores induzidos pelo fracking ou em decorrência dele representam outro impacto. Eles podem ser ocasionados pelo próprio fraturamento hidráulico ou pela reinjeção, na rocha, da água suja que sobe à superfície com o óleo ou gás – uma maneira mais barata de descartá-la. No estado norte-americano do Texas, por exemplo, o número de terremotos de magnitude 3 ou maior dobrou de 2021 para 2022, o que cientistas têm atribuído à reinserção de água no subsolo após o fracking. Pela escala Richter, a partir do nível 3,5 o tremor começa a ser sentido pela população.
Em Vaca Muerta, na Patagônia argentina, região com a segunda maior reserva potencial de gás de folhelho no mundo e onde o fracking é feito desde 2011, os terremotos também prejudicam a vida das comunidades. Um estudo identificou 206 sismos na região entre 2015 e 2020, algo que pode ser considerado uma nova dinâmica local e tem relação com o fraturamento hidráulico, concluíram os pesquisadores. Pela mesma razão, o Reino Unido baniu a prática em 2019.
Porém, “os recursos hídricos são potencialmente os mais sensíveis aos impactos ambientais decorrentes das atividades de fracking”, de acordo com um caderno da FGV Energia, MME, EPE e Rede Gasbras, pois elas exigem “quantidades significativas de água doce” e geram “grandes volumes de rejeitos líquidos contaminados por diversos elementos e compostos potencialmente tóxicos”.
A técnica demanda, segundo alguns estudos, de 10 milhões a 17 milhões de litros de água para cada poço, o que ameaça a segurança hídrica das regiões onde é executada, sobretudo nas quais já há escassez ou em épocas de seca. Além disso, existe o risco de contaminação de aquíferos, pelos quais passam os furos que miram camadas de rocha muito abaixo da camada subterrânea de água. Mais provável do que isso, mostra um artigo científico publicado em 2017, é a contaminação de águas superficiais, como rios e córregos, por derramamentos ou vazamentos acidentais de fluidos residuais do fracking.
Todas essas implicações podem provocar danos à saúde humana. Pesquisa divulgada em março deste ano identificou que produtos químicos relacionados ao fraturamento hidráulico têm chegado a aquíferos que alimentam os sistemas de água municipais da Pensilvânia – considerado um dos epicentros da prática nos EUA –, sendo que o potencial de contaminação é maior durante o período de pré-produção, quando um novo poço é perfurado. As autoras do trabalho observaram, ainda, que cada novo poço aberto a menos de 1 km de uma fonte pública de água potável está associado a um aumento de 11% a 13% na incidência de partos prematuros e baixo peso no nascimento de bebês expostos durante a gestação.
O que é o fracking e o que significam recursos não convencionais
Recursos não convencionais são aqueles extraídos de rochas de baixa permeabilidade, mais difíceis de explorar do que os reservatórios típicos, que produzem petróleo e gás convencionais. “Xisto” (shale, em inglês) é o termo usado popularmente para se referir ao folhelho, uma das formações rochosas não convencionais em que o gás e o petróleo podem ocorrer. Também existem os reservatórios de arenitos ou carbonatos “fechados” com petróleo e gás (tigh oil e gas), entre outros.
Para que a operação comercial desses reservatórios não convencionais seja viável, são necessárias técnicas mais complexas. Primeiro, o poço é perfurado de maneira vertical até que se atinja a camada de rocha a ser explorada, que normalmente fica a profundidades de 1,8 a 3 km abaixo da superfície. A partir daí, a perfuração continua horizontalmente por distância que varia de 1 a 3 km, e, ao fim desse processo, o poço é revestido com tubos de aço e cimentado.
Depois disso, entra o fraturamento hidráulico: a injeção de grandes quantidades de água com diversos produtos químicos (na literatura científica, há registro de mais de mil componentes químicos já utilizados nas operações) e areia sob alta pressão, que produz fraturas nas rochas, permitindo que o gás e o óleo antes inacessíveis fluam para a tubulação e sejam extraídos.
Fonte: Agência Pública.
Foto: Eneva/Divulgação.