Mais de 500 baleias e golfinhos são mortos em temporada de caça nas Ilhas Faroe

Quando se fala nas remotas Ilhas Faroe, localizadas no norte da Europa, algumas coisas vêm imediatamente à lembrança. Uma delas são as paisagens frias e imponentes — para os mais afeitos às belezas tropicais, um tanto desoladoras.

Mas todos os anos o arquipélago é lembrado por um motivo bem menos leve ou prosaico: a matança de baleias-piloto.

Desde maio deste ano, quando teve início a temporada de caça, conhecida na região como “grind”, cerca de 500 animais foram mortos, de acordo com números oficiais do governo autônomo do arquipélago, que faz parte do território da Dinamarca. As cenas sempre chocantes, de praias tingidas pelo sangue dos cetáceos, voltaram ao noticiário com paraça depois das últimas caçadas.

Ambientalistas e defensores da causa animal têm se pronunciado fortemente contra as grind, disseminando as imagens fortes. No entanto, o governo dinamarquês e também o das Ilhas Faroe não parecem estar dispostos a mudar essa realidade. Pelo contrário: o discurso oficial é de que a caça é regulamentada e, por isso, sustentável.

O número de mortes registradas este ano se aproxima da cota anual determinada pelo país como um limite para a caça, que é de 500 animais. As autoridades alegam que esse número atende às necessidades dos cerca de 55 mil habitantes do arquipélago. “As capturas de baleias-piloto nas Ilhas Faroe são sustentáveis e há muito tempo foram reconhecidas internacionalmente”, afirmou à CNN o porta-voz para Assuntos Internacionais do governo autônomo, Pall Nolsoe.

Algumas fontes não-oficiais, no entanto, denunciam que a matança é ainda maior. A Ocean Care, entidade ambiental voltada à preservação nos mares e rios, informa que somente na semana passada foram capturadas cerca de 444 baleias-piloto: 226 em Vestmanna e 178 em Leynar, ambas as localidades situadas na ilha de Streymoy.

Caça para subsistência

A principal argumentação dos faroenses para manter a caçada nos patamares atuais é que ela é necessária à subsistência dos moradores da região.

A caça é feita para obter carne e gordura dos animais,  consumidos pela população local há séculos. “As baleias-piloto e outras pequenas espécies representam uma das poucas fontes locais de carne que não precisam ser importadas de longe”, pondera Nolsoe. “A carne e a gordura de cada baleia fornecem alimentos valiosos com baixa pegada de carbono, distribuídos gratuitamente nas comunidades locais onde ocorrem as incursões de baleia”.

Algumas escavações arqueológicas registram que os animais faziam parte da dieta dos moradores das ilhas desde a Idade Média, ainda no período viking. Os registros oficiais mais antigos das caçadas, segundo o governo autônomo, datam de 1584. “Estas são, provavelmente, as estatísticas contínuas mais longas sobre a caça da vida selvagem em qualquer lugar do mundo”.

Além da tradição, os faroenses alegam que existe uma rígida legislação e que esse controle é feito historicamente. Para endossar esse argumento eles citam um documento de 1298, chamado Carta das Ovelhas, que descreve as regras para a caça às baleias. Um regulamento mais complexo foi promulgado em 1832 e atualizado em 2013.

Segundo as autoridades faroenses, o Atlântico Norte abriga cerca de 380 mil baleias-piloto, sendo que desse total 100 mil trafegam pelas águas próximas às Ilhas Faroe. Ou seja, para eles, o atual limite de 500 baleias mantém um controle ambiental da região.

Alguns especialistas não citam a poluição, mas defendem a busca de alternativas. “É possível substituir a caça por meio de uma mudança de hábitos. A população pode substituir pela aquicultura pela criação de peixes e algas, por exemplo”, explica Sidney Fernandes, biólogo e professor da Unifesp.

Encalhadas e caçadas

Alguns números oficiais, no entanto, tornam a análise do tema um pouco mais complexa. O Ministério das Pescas da Dinamarca divulga anualmente estatísticas de baleias e golfinhos mortos nas Ilhas Faroe, seja pela caça ou por estarem encalhadas nas praias e bancos de areia. No entanto, esses dados são divulgados em conjunto, sem distinção entre quantas morreram em uma ou outra ação. De qualquer forma, todos os animais são aproveitados pelos caçadores.

Os números, informa o ministério, não incluem baleias já encontradas mortas ou que não foram utilizadas para consumo. Todos os dados de captura e encalhe das Ilhas Faroe são relatados anualmente à Comissão de Mamíferos Marinhos do Atlântico Norte (NAMMCO).

No ano passado, o número de mortes nas “grind” foi de 527, o menor índice desde 2016, quando houve 295 casos.

Em compensação no ano de 2017 foi registrado o pior número do século: 1.207 baleias-piloto mortas ou encalhadas.

O número de golfinhos mortos ou encalhados também é considerável. Desde 2000 os números oscilam de 10 em 2019 para 1.423 em 2021. No ano passado não foram divulgados os números.

Mudança de cultura

Em meio às discussões sobre tradição e subsistência, também entra em pauta uma sugestão de mudança de comportamento, como forma de se adaptar aos tempos atuais.

A administração das Ilhas Faroe argumenta que, apesar das cenas sangrentas, a caça é feita com cuidado para que os animais sofram o mínimo possível. O porta-voz Pall Nolsoe argumenta que novas técnicas fizeram com que a morte das baleias fosse abreviada nas ações. “A lança espinhal, projetada por um veterinário faroense, foi introduzida em 2015 e é um equipamento obrigatório para a matança de baleias-piloto”, explica.

“Ela é usada para cortar a medula espinhal da baleia, que também corta o principal suprimento de sangue para o cérebro, garantindo tanto a perda de consciência quanto a morte do animal em segundos”.

Segundo Nolsoe, já foi demonstrado que a lança espinhal reduz o tempo de matança para até 2 segundos, além de melhorar a precisão e a segurança. “Normalmente, um grupo inteiro de baleias é morto em menos de quinze minutos”.

Sidney Fernandes não vê as coisas dessa forma. “Os arpões são dolorosos e não matam o animal de imediato. Eles ficam agonizando e tentando se livrar do arpão, o que causa sofrimento prolongado”.

Se isso não é um sofrimento prolongado, acredito que essas autoridades tenham uma visão deturpada do que significa esse termo”.

Regulação internacional

Tanto especialistas em vida marinha quanto ambientalistas admitem ser difícil impedir a matança no contexto atual porque ela não fere as leis locais que, pelo contrário, incentivam a caça sob a alegação de que existe uma regulamentação. Por isso, eles defendem a criação de dispositivos internacionais.

“Assim como em uma guerra ou alguma questão de violação de direitos humanos, o que pode acontecer são boicotes comerciais, desfazer parcerias”, sugere Marcus Nakagawa, professor e coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento Socioambiental.

Zerbato defende também ações de conscientização da população para conter a matança. “A partir do momento que tomarem consciência que os tempos não são mais aqueles em que eles caçavam para combater a fome, o que eles chamam de ‘tradição’ tem chances de perder paraça. Hoje enfrentamos uma crise ambiental gravíssima, que pode nos levar a tempos muito sombrios”.

Em meio ao debate, as baleias e golfinhos do Atlântico Norte seguem sendo caçadas e gerando cenas impactantes para o mundo inteiro. Resta ver se nas próximas temporadas veremos mudanças mais agudas na forma de lidar com a mortandade de centenas de seres vivos.

Fonte: CNN.

Foto: Hulton Archive/Getty Images.