O roteiro chega a ser piegas de tão repetitivo. Um grupo de cientistas vem a público alertar sobre o desastre iminente. A câmera corta para eles sendo ridicularizados por políticos, grandes empresários e setores da imprensa. A população compra o discurso de que o risco é exagerado e que não há problema em permanecer como está. Apesar dos gritos, o grupo de cientistas é taxado de maluco e sumariamente ignorado. Inevitavelmente, o desastre acontece.
Então, o filme realmente começa. Uma luta desenfreada pela sobrevivência. Os governos caem, as desigualdades ficam mais evidentes e a sociedade se rompe de vez em um “cada um por si”. O senso de coletividade é reduzido a alguns poucos casos e a busca pela cura ou pela solução é muito menos relevante do que pela sobrevivência. Dependendo do diretor e do público-alvo da distopia, o filme encerra com um tom de esperança, de expectativa, mas raramente, com a solução sendo posta em prática.
Por que?
Porque a solução é sempre difícil. Não tão difícil quanto viver em uma distopia, mas repensar o modo de vida parece simplesmente impossível para uma parcela significativa da população. Só o fato de falarmos da falência do nosso atual modo de vida já é mais do que suficiente para suscitarmos hordas de haters de todos os confins da internet e também da vida real. A disputa pela narrativa é mais forte do que a vontade de pôr fim ao problema em si. Este roteiro está explícito na calamidade que se abate sobre o Rio Grande do Sul, que infelizmente não é um incidente isolado, restrito a uma região.
Segundo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, os dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) apontam que 80 milhões de brasileiros em 1.942 municípios vivem expostos a eventos climáticos extremos. Essa situação levou o Ministério a trabalhar em um plano de prevenção, mas colocá-lo em prática está longe de ser uma tarefa fácil. Afinal, segundo o Observatório do Clima, o Congresso Nacional conta com 25 projetos de lei e três emendas constitucionais, todas com grandes chances de avançar rapidamente, que deterioram as leis ambientais do Brasil.
Poucos dias antes do desastre, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto 364/2019 que reduz a proteção legal aos biomas brasileiros como a Mata Atlântica, o Cerrado e o Pantanal. O projeto modifica artigos da Lei da Mata Atlântica, mas na prática coloca em risco cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos em todo o país, além de quase 15 milhões de hectares na Amazônia. O mais impressionante, é que o projeto de lei foi originalmente protocolado para resolver uma situação envolvendo produtores gaúchos que pretendiam retirar áreas denominadas “campos de altitude”, típicos da região, do que é considerado território de Mata Atlântica. Contudo, extrapolou o escopo original e se tornou um aterrador projeto contra os biomas brasileiros.
Na última semana, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) pautou a votação de um projeto de lei que permite a redução de reservas florestais em estados e municípios da Amazônia Legal. Na prática, o PL 3.334/2023 reduz de 65% para 50% a parte do território dos Estados ocupados por áreas protegidas. Com isso, pretende-se reduzir os territórios categorizados como “reserva legal”, para que caiam dos atuais 80% para até 50% em áreas florestais. A votação do projeto, que faz uma alteração profunda nas proteções previstas no Código Florestal, foi cancelada de última hora por conta do receio da pressão em meio ao evento climático extremo, mas nada garante que quando a maré baixar, ele será novamente pautado e aprovado.
O mesmo congresso conta com, ao menos, cinco propostas fundamentais para a legislação climática. Porém, sequer possuem data para votação. Entre elas, está o Projeto de Lei 4129/2021 que busca transformar os “Planos de Adaptação à Mudança do Clima” em políticas públicas efetivas, alinhadas com estratégias de mitigação e priorizando populações, setores e territórios mais vulneráveis à crise climática. Esses planos são cruciais para gerenciar riscos de desastres e eventos extremos.
Diversos estudos apontam que o zerar o desmatamento é sinônimo de desenvolvimento e que proteger as florestas é bom para o agronegócio e para o país. Outros estudos apontam para o “Tipping Point” das mudanças climáticas e a necessidade urgente de políticas de mitigação. Mas, infelizmente, essas pesquisas também seguem sendo ignoradas.
É urgente e vital apoiar as vítimas no Rio Grande do Sul, mas também é crucial agir para evitar que essa tragédia se torne a norma em nosso país. É imprescindível discutir e implementar políticas de adaptação, combater a injustiça climática e, mais do que nunca, deter o avanço do desmatamento. Se não quisermos testemunhar repetições desse cenário devastador e não parecer os cientistas frustrados das distopias que vemos no cinema, precisamos impedir a aprovação de projetos que só perpetuam a destruição.
Fonte: Um Só Planeta.
Foto: Getty Images.