O ruído rítmico dos machados batendo nas árvores ecoa nas profundezas da floresta de sobreiros.
Mas em Coruche, uma área rural ao sul do rio Tejo conhecida como a “capital da cortiça” de Portugal, o estrondo das árvores caindo no chão não acompanha o som dos golpes de machado. Em vez disso, trabalhadores experientes retiram cuidadosamente a casca dos troncos das árvores.
Esse ritual anual de extração de cortiça nos meses de verão existe há milhares de anos no Mediterrâneo ocidental. Egípcios, persas, gregos e romanos usavam o material para fabricar equipamentos de pesca e sandálias e para vedar jarros, potes e barris. Quando as garrafas de vidro ganharam popularidade no século 18, a cortiça se tornou o vedante preferido por ser durável, à prova d’água, leve e maleável.
Atualmente, a cortiça está passando por um renascimento à medida que mais setores buscam alternativas sustentáveis ao plástico e a outros materiais derivados de combustíveis fósseis. A casca é agora usada em pisos e móveis, na fabricação de calçados e roupas, e como isolamento em residências e carros elétricos. As exportações de Portugal atingiram o recorde histórico de 670 milhões de euros (R$ 3,6 bilhões) no primeiro semestre de 2023.
Mas a cortiça é mais do que um material verde da moda. Além de criar empregos, as florestas onde ela cresce fornecem alimento e abrigo para os animais, ao mesmo tempo em que sequestram dióxido de carbono. E, ao contrário da maioria das árvores cultivadas comercialmente, os sobreiros nunca são cortados, o que significa que sua capacidade de armazenamento de carbono continua durante os 200 anos ou mais de vida.
Como a cortiça é extraída
O sobreiro é uma árvore perene, baixa e de crescimento lento, endêmica do Mediterrâneo.
As florestas mais extensas podem ser encontradas na costa atlântica da Península Ibérica.
Em Portugal, o maior produtor de cortiça do mundo, os sobreiros são tão apreciados que foram escolhidos como a árvore nacional do país e são protegidos por lei, portanto é proibido derrubá-los.
A Espanha é o segundo maior produtor, seguida por Marrocos, Argélia, Tunísia, Itália e França.
O processo de extração da cortiça exige precisão e anos de prática. O golpe do machado deve ser forte, mas também delicado para evitar atingir a casca interna e danificar a árvore. Como o trabalho é muito especializado, é um dos empregos agrícolas mais bem remunerados em Portugal.
A casca só pode ser extraída entre o final de maio e agosto, quando a árvore está em sua fase ativa de crescimento, o que facilita a retirada da camada externa sem danificar o tronco da árvore.
O sobreiro é único em sua capacidade de regenerar a casca. Depois de removida, os trabalhadores escrevem o último número daquele ano com tinta branca no tronco marrom dourado exposto – um três significa que foi colhido em 2023. A casca voltará a crescer lentamente e estará pronta para outra colheita após nove anos. “A árvore sempre se regenera”, diz a engenheira florestal Conceição Santos Silva.
Enquanto os machadeiros trabalham em pares removendo a cortiça, algumas mulheres juntam as tábuas em pilhas para o transporte.
Em seguida, as tábuas serão empilhadas ao ar livre em áreas de armazenamento expostas ao ar e à luz solar. Após seis meses de envelhecimento para remover a umidade, elas serão classificadas de acordo com sua espessura e qualidade e, em seguida, fervidas para limpar as impurezas e tornar o material mais macio e fácil de manusear.
De rolha de garrafa a material ecológico
Embora a maior parte da cortiça ainda seja usada como rolha de garrafa, na última década diferentes setores têm encontrado novos usos para ela.
“Estamos observando um interesse crescente na cortiça como material sustentável”, diz Rui Novais, especialista em materiais da Universidade de Aveiro, em Portugal. “Em comparação com materiais como a espuma de poliuretano (usada para isolamento térmico), os produtos feitos com cortiça requerem menos energia e produzem menos emissões de CO₂.”
A casca grossa do sobreiro se adaptou para defender a árvore do fogo, tornando-a um poderoso material isolante que tem sido usado para proteger tanques de combustível em naves espaciais da Nasa e baterias de carros elétricos. Ele também é resistente à água e ao óleo e pode suportar a compressão sem perder a elasticidade.
“É um material extraordinariamente renovável e biodegradável”, diz Novais. “Também é muito durável. Foi demonstrado que os produtos de cortiça permanecem praticamente inalterados por mais de 50 anos.”
Parte do carbono absorvido pelos sobreiros é transferido para os produtos de cortiça, que podem ser usados por longos períodos, reutilizados e reciclados. Vários estudos descobriram que a cortiça é negativa em termos de carbono, o que significa que ela pode armazenar mais carbono do que a quantidade necessária para produzi-la.
Quando as pranchas de cortiça são cortadas e perfuradas para formar rolhas de cortiça natural, as sobras são moídas em grânulos e prensadas para formar folhas ou blocos de cortiça. “Até o pó da cortiça é utilizado para produzir energia”, afirma João Rui Ferreira, secretário-geral da Associação Portuguesa da Cortiça. “Ele alimenta as caldeiras da indústria e parte da produção.”
A cortiça reciclada também pode ser triturada e composta para fabricar outros produtos. Em Portugal, o Green Cork, um programa de reciclagem iniciado pela organização ambiental Quercus, já recolheu e reciclou mais de 100 milhões de rolhas de cortiça desde 2009. Uma iniciativa semelhante, a ReCORK, existe nos Estados Unidos.
Uma fábrica natural
A maior parte da cortiça produzida em Portugal cresce nas colinas e planícies suavemente onduladas do sul do país, em um antigo sistema agroflorestal conhecido como montado. Esse ecossistema semelhante a uma savana combina cortiça, azinheiras e oliveiras com pastagens, gado, culturas e pousios.
“O solo no sul de Portugal é muito pobre, chove muito pouco e as temperaturas são muito altas no verão”, diz Teresa Pinto-Correia, professora da Universidade de Évora, em Portugal, especializada em paisagens rurais e sistemas agrícolas. “Mas esse tipo de sistema é produtivo mesmo quando os recursos são escassos e as condições são difíceis.”
Durante séculos, os habitantes locais preservaram o montado porque a cortiça proporcionava aos proprietários de terras uma fonte de renda. Esse mosaico de habitats abriga centenas de espécies, incluindo o lince ibérico, o gato selvagem mais ameaçado do mundo e a ameaçada águia imperial. Um dos mais antigos sobreiros conhecidos no mundo, plantado em 1783 em Águas de Moura, é conhecido como “o assobiador” porque muitos pássaros visitam seus grandes e extensos galhos.
Os porcos ibéricos se alimentam de bolotas e as cabras pastam nos pastos entrelaçados. A intercalação de sobreiros com animais e plantações pode aumentar a produção e a biodiversidade, mas também construir o solo, controlar a erosão, reter água, combater a desertificação e sequestrar carbono, diz Pinto-Correia.
Embora as florestas de cortiça possam ajudar a mitigar os efeitos das mudanças climáticas, elas também correm cada vez mais riscos, à medida que a seca e os incêndios florestais se tornam mais intensos e mais frequentes na região.
“A árvore está adaptada ao clima mediterrâneo. A casca a protege do fogo”, diz Santos Silva. “Mas nos dois primeiros anos após a extração da cortiça, as árvores ficam muito mais vulneráveis aos incêndios florestais porque não têm essa proteção.”
No entanto, os incêndios nos sobreirais, diz ela, permanecem raros devido à cuidadosa gestão humana.
Por ser uma árvore de crescimento lento, o sobreiro leva décadas para fornecer sombra e produzir cortiça de boa qualidade. Mas em Coruche, as pessoas ainda seguem um velho ditado português: “Quem gosta de seus netos planta sobreiros”.
Fontes: Estadão, The Washington Post.
Foto: Jose Sarmento Matos/The Washington Post..