Os indianos idolatram o rio Ganges. Os japoneses xintoístas consideram o Monte Fuji um lugar sagrado. Os portugueses veneram sobreiros. Em 2011, a árvore foi reconhecida, por unanimidade no Parlamento português, como a Árvore Nacional de Portugal. É uma espécie protegida desde 1209, no reinado de d. Sancho 1º. Costumava-me dizer que um sobreiro é uma obra de arte, podemos ver, mas não podemos tocar.
Isso não tem impedido que milhões de árvores, incluindo milhares de sobreiros, estejam sendo abatidos em Portugal para a construção de centrais fotovoltaicas, em particular na região do Ribatejo e Alentejo. Organizações locais ambientais como o GEOTA e a Quercus estão se opondo à “destruição de habitats protegidos” e ao “ataque ambiental.” No entender do GEOTA, “a transição energética não pode ser feita à custa da destruição do ambiente”.
Mas as estatísticas são impiedosas. Folheia-se o Energy Transition Index, do Fórum Econômico Mundial, e Portugal cantarola com o seu 15º lugar a nível mundial. No Eurostat, é o sétimo país europeu com maior participação de renováveis na sua matriz energética (muito acima da média europeia de 22%). As energias renováveis representam já cerca de 60% da eletricidade consumida em Portugal, sendo a meta “atingir os 80% até 2026”, diz o primeiro-ministro António Costa. O objetivo é tornar-se um “exportador de energia verde”.
Será que as percentagens e os rankings esmiúçam a complexidade do fenômeno?
A necessidade de descarbonizarmos o planeta e enfrentarmos as alterações climáticas é indisputável. Mas isso não nos pode impedir de concluirmos que a proteção do meio ambiente tem um custo que é também ambiental. O maniqueísmo com que adjetivamos a energia renovável (“boa”) e a energia fóssil (“ruim”) leva-nos a desmatar a plena dimensão da transição energética. Contabilizamos os aspectos positivos, mas negligenciamos os elementos negativos.
Os chineses idolatram as Montanhas Amarelas de Huangshan, os aborígenes australianos consideram o monólito Uluru um lugar sagrado. Os brasileiros veneram a Amazônia. É a expressão máxima da sua robustez ambiental e o seu cartão postal para o mundo. Mas para o Brasil ser, de fato, uma potência ambiental global e reduzir as suas emissões em 53%
A OIT (Organização Internacional do Trabalho) estima que mais de 20 milhões de “empregos verdes” podem ser criados até 2030. Para outras organizações internacionais são 50 milhões, ou 70 milhões. A prática em vários países tem demonstrado que estes empregos são geralmente pouco qualificados, precários e mal remunerados.
Nos Estados Unidos, trabalhadores não sindicalizados que atuam em projetos solares de grande escala recebem substancialmente menos do que aqueles que trabalham em outras indústrias. No Reino Unido, parques de energia eólica offshore têm usado mão de obra ilegal e remunerado abaixo do salário mínimo. Um estudo académico, reproduzido pelo New York Times este ano, alerta que os cinco maiores produtores mundiais de painéis solares — todos chineses — usam trabalhadores em regime análogo à escravidão.
A instalação de painéis solares tem como objetivo produzir energia limpa. Mas o processo de fabricação dos painéis emite gases de efeito estufa. Além disso, um dos subprodutos desse processo é o tetracloreto de silício, uma substância química tóxica. Em painéis de filme fino, materiais tóxicos como o telureto de cádmio e o selênio de cobre com índio são elementos constitutivos do próprio painel.
A matriz elétrica brasileira é predominantemente formada por fontes hidráulicas. Porém, as reservas hidrelétricas em áreas florestais, como é comum no Brasil, emitem gás carbônico pela decomposição das árvores acima da lâmina de água e gás metano pela decomposição no fundo do reservatório. O biólogo americano Philip Fearnside, ativo há muitos anos no Brasil, salienta que este é um tema “que tem recebido relativamente pouca atenção”.
A transição energética também é dependente da exploração mineira de metais raros e de minerais, como cobalto, níquel e metais de terras raras. Para não explorarmos petróleo, um recurso natural não renovável, exploramos minérios, outro recurso natural não renovável.
E devemos pesar também os impactos nas comunidades locais relativos à construção de megaprojetos de energias renováveis, como vem acontecendo no Nordeste do Brasil, onde os parques eólicos tem sido implantados sobre dunas, topo de serras, com efeitos danosos irreversíveis sobre a fauna e a flora. Além disso, os aerogeradores tem sido instalados muito próximo as áreas habitadas, ou seja, não mantendo uma distância mínima segura, como ocorre na Europa e Estados Unidos, com impactos na saúde dos moradores.
Situação semelhante está acontecendo com a instalação de usinas solares no nordeste brasileiros, que muitas vezes, ao invés de ocupar áreas já sem vegetação, destroem a vegetação nativa da Caatinga, único ecossistema, genuinamente brasileiro.
Mas se há um excesso de otimismo relativamente aos benefícios das energias renováveis, também não podemos nos exceder nas críticas. Ainda que o ciclo de produção de energias renováveis implique a emissão de gases de efeito de estufa, o volume é substancialmente inferior ao ciclo de produção de energias fósseis. A crença cega nos méritos da sustentabilidade não pode ser combatida pelos padroeiros do falso moralismo.
Estas duas visões têm de se encontrar no meio do caminho, simplesmente reconhecendo, de forma prática, que nada é integralmente sustentável. A sustentabilidade pura não existe. O caminho da transição energética é repleto de exceções, desvios e incongruências que, mesmo quanto contabilizadas, não justificam o abrandar do passo na direção da descarbonização do planeta.
Ainda assim, o lado B das energias renováveis precisa de ser mensurado e reportado. A COP28 que começa no próximo mês nos Emirados Árabes Unidos, com participação massiva de ativistas climáticos, talvez não seja o lugar certo para discutirmos os instrumentos mais indicados para fazê-lo. Como o presidente da COP28 é também o presidente da empresa nacional de petróleo de Abu Dhabi, a visão extremada e acrítica dos benefícios das energias renováveis deve prevalecer.
Um dos que será debatido é este: as energias renováveis precisam de ser discutidas na sua complexidade. Não são intocáveis como o Monte Fuji ou as Montanhas Amarelas. A sua contribuição para a descarbonização do planeta só será devidamente realizada se maximizarmos os seus impactos positivos e reduzirmos os negativos. Para isso, é preciso reconhecer ambos.
Fonte: Folha SP.
Foto: Regis Duvignau/Reuters.